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Espião Silenciado: Um Ensaio | Teatro e História
Resenha – Um teatro que escava o passado para iluminar o presente “Espião Silenciado: Um Ensaio” não apenas resgata uma história quase esquecida — a morte misteriosa de um agente duplo às vésperas do golpe de 1964 — como ilumina, com rigor e sensibilidade, um dos aspectos menos debatidos da preparação militar para a tomada de poder: a articulação prévia dos quartéis, o uso estratégico do anticomunismo como tática de desestabilização e, sobretudo, o apoio silencioso e decisivo do governo dos Estados Unidos à ruptura democrática no Brasil. Trata-se de um teatro de investigação, que nos faz pensar não só sobre os mortos da história, mas também sobre os silêncios…
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Meu nome: Mamãe – A universalidade do gesto íntimo
Resenha por Márcio Boaro Entre causos nordestinos e memória íntima, Aury Porto constrói um gesto de resistência delicada diante da perda. Em diferentes momentos da história recente do teatro e da dança, a força do corpo na construção da narrativa revelou-se com intensidade notável. Em 1997, na montagem de A Resistível Ascensão de Arturo Ui dirigida por Heiner Müller, o ator transmutava-se em cena: surgia como um cão e, lentamente, transformava-se em Hitler, através de uma fisicalidade precisa que amplificava visceralmente a narrativa de Brecht. Da mesma forma, Café Müller, criação emblemática de Pina Bausch, expõe a naturalização da violência física: ao longo da cena, uma personagem vai se acostumando…
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Entre o Quadro e o Corpo: Gabriela Duarte em “O Papel de Parede Amarelo e Eu
Divulgação (Foto: Priscila Prade) Em um momento histórico em que o conservadorismo ressurge com força e ousadia, O Papel de Parede Amarelo e Eu se impõe como um gesto necessário. Não apenas por recuperar uma obra fundamental do feminismo literário, mas porque o faz em um Brasil onde vozes religiosas afirmam publicamente que mulheres não devem estudar tanto quanto homens, porque “é a vontade divina que o homem seja o cabeça do casal”. O espetáculo, ao contrário, afirma o oposto: que o corpo e a mente das mulheres são inteiros, autônomos e inegociáveis. Montar esse texto hoje, nesse país, é mais do que encenar uma narrativa — é enfrentar um…
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Restinga de Canudos – A Cocanha Cabocla do Teatro Brasileiro
Logo nos primeiros minutos de Restinga de Canudos, a plateia é convidada a partilhar um enorme cuscuz nordestino com leite de coco. No gesto de servir a comida — fazem uma brincadeira de muito bom tom com a hospitalidade do povo brasileiro, dizendo que foi feita para 14 (o elenco), mas que alimenta com boa vontade 134 (o elenco mais os 120 espectadores) — o espetáculo inaugura sua partilha de sonho: “nos sonhos de Conselheiro, cabia todo mundo.” Esse sonho de uma Cocanha cabocla é posto desde o início. Mesmo sem nomeá-lo claramente, o espetáculo, assim como os sonhos do beato, evoca a terra mítica da Idade Média — onde…
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Gente é Gente?! – Quem manda aqui? O Carnaval armado do poder
Análise crítica de “Gente é Gente?!”, livre adaptação de Brecht dirigida por Marco Antonio Rodrigues Gesualdo Brilhante: bondade que vira alvo. Gente é Gente?!, dirigido por Marco Antonio Rodrigues, propõe uma releitura potente de Um Homem é um Homem, de Bertolt Brecht. Mais do que atualizar, a peça desloca com precisão os eixos dramatúrgicos e históricos da obra original para uma conjuntura específica: o Brasil de 2025. E isso não é apenas simbólico. É preciso lembrar que, neste exato momento, comandantes militares brasileiros estão sendo julgados por tentativa de golpe de Estado — algo inédito na história da República. Na peça de Brecht, situada na Índia sob domínio britânico, a…
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Uma canção indigesta servida com caldinho de feijão
Resenha do espetáculo Canção Indigesta, do Engenho Teatral Assisti a Canção Indigesta ontem à noite, no Engenho Teatral. E saí de lá como quem atravessa uma tempestade lúcida: com o corpo mexido, o pensamento mobilizado e a sensação de que o teatro — esse que não se rende ao mercado — ainda pulsa como espaço de enfrentamento coletivo. Não é fácil digerir o que é servido em cena. E nem deveria ser. O título da peça já avisa: trata-se de uma canção indigesta. Mas antes mesmo que o espetáculo comece, o grupo nos recebe com generosidade, oferecendo pastas veganas com torradas, suco de melancia bem fresco e cerveja. Mais tarde,…
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Pai contra Mãe ou Você Está me Ouvindo?
Pai contra Mãe ou Você Está me Ouvindo?O Coletivo Negro atualiza Machado de Assis em um espetáculo de força estética e denúncia pungente Em um teatro pulsante de representatividade, Pai contra Mãe ou Você Está me Ouvindo?, espetáculo do Coletivo Negro, nos convida a ouvir — e ver — o que se recusa a desaparecer: as marcas da escravidão na estrutura da sociedade brasileira. Concebida, dirigida e coescrita por Jé Oliveira, a peça parte do conto homônimo de Machado de Assis e propõe um mergulho profundo nas engrenagens históricas que mantêm o racismo estrutural operando com vigor no presente. Três intérpretes — Aysha Nascimento, Flávio Rodrigues e Raphael Garcia —…
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Gertrude, Alice e Picasso: ecos da geração perdida para os dias de hoje
Um espetáculo que costura o passado, o presente e a delicadeza do teatro como espaço de reencontro humano Por Márcio Boaro A peça mergulha na atmosfera da chamada “geração perdida”, nome com que esses próprios artistas se identificavam — um grupo de jovens criadores que, vindos de diferentes partes do mundo, se encontraram em Paris no período entre guerras. Eram sobreviventes do fim do século XIX e testemunhas da brutalidade da Primeira Guerra Mundial. Carregavam nos pés o barro do século anterior, mas nas mãos, as cores vibrantes das vanguardas. Viver e se expressar com liberdade era, para eles, uma urgência. Pablo Picasso (Joca Andreazza), Gertrude Stein (Barbara Bruno) e…
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A Memória na Areia: Para Mariela e a Construção do Pertencimento
No coração de uma arena retangular, cercado pelo público de todos os lados, um grande quadrado de areia domina o espaço. Esse elemento cenográfico, ao mesmo tempo lúdico e simbólico, se torna palco de memórias, transforma-se em cidade, em infância e, por fim, em identidade. Assim começa Para Mariela, novo espetáculo do Grupo Sobrevento, em cartaz no Teatro Sobrevento até 30 de março, com entrada gratuita. Inspirado na cultura boliviana e nos relatos das crianças imigrantes da região do Brás e Belenzinho, o Sobrevento construiu o espetáculo a partir do Teatro de Objetos documental, resultado de 18 meses de escuta ativa em escolas, ONGs e centros de imigrantes. A pesquisa…
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Muito mais que Um segundo…
Paulo Maeda em Um Segundo (ensaio sobre o tempo) propõe vivermos muito mais do que um segundo de nossas vidas. Ele nos convida para viver duas experiências importantes e praticamente perdidas no século XXI: um encontro de verdade e a possibilidade de mergulhar na humanidade do outro. O convite para a peça vem através de pedido sincero para passar duas horas com esse ator na sala de sua casa, fazendo parte de um pequeno grupo formado por seis pessoas conhecidas ou indicadas por conhecidos. O prólogo da peça é feito por mensagens e áudios de WhatsApp que nos preparam para a experiência a ser vivida, nos apresentando os códigos e…