Entre o Quadro e o Corpo: Gabriela Duarte em “O Papel de Parede Amarelo e Eu
Divulgação (Foto: Priscila Prade)
Em um momento histórico em que o conservadorismo ressurge com força e ousadia, O Papel de Parede Amarelo e Eu se impõe como um gesto necessário. Não apenas por recuperar uma obra fundamental do feminismo literário, mas porque o faz em um Brasil onde vozes religiosas afirmam publicamente que mulheres não devem estudar tanto quanto homens, porque “é a vontade divina que o homem seja o cabeça do casal”. O espetáculo, ao contrário, afirma o oposto: que o corpo e a mente das mulheres são inteiros, autônomos e inegociáveis.
Montar esse texto hoje, nesse país, é mais do que encenar uma narrativa — é enfrentar um sistema que insiste em domesticar subjetividades.
O conto que nasceu da vida: Charlotte Perkins Gilman em sua própria prisão
Escrito em 1892 por Charlotte Perkins Gilman, The Yellow Wallpaper nasceu de uma experiência profundamente pessoal. Após o nascimento de sua filha, Gilman sofreu um colapso nervoso, que hoje provavelmente seria reconhecido como uma depressão pós-parto. À época, foi encaminhada ao célebre neurologista Dr. Silas Weir Mitchell, referência no tratamento de “neurastenia feminina”, que prescreveu o infame “tratamento de repouso” — uma imposição de silêncio criativo, isolamento social e inatividade intelectual. Gilman deveria abandonar a escrita e a leitura, limitar ao mínimo qualquer estímulo mental, e submeter-se a um regime doméstico de passividade quase absoluta.
Esse médico não era seu marido, mas o poder que ele representava se infiltrava na vida conjugal. Charles Walter Stetson, artista plástico e então esposo da autora, apoiava a autoridade médica e reforçava, ainda que de modo não intencional, a estrutura patriarcal que definia o destino de sua esposa. O lar, que deveria ser espaço de acolhimento, tornou-se o palco da opressão — e Gilman, ao compreender esse cárcere, fez da escrita um gesto de insubmissão.
O Papel de Parede Amarelo não é apenas uma metáfora sobre a loucura — é uma denúncia da medicalização da subjetividade feminina, da negação da autonomia intelectual das mulheres e do controle patriarcal exercido dentro dos lares. O papel amarelo do conto é, ao mesmo tempo, objeto de fixação e prisão simbólica: a mulher do conto enxerga nele uma figura feminina trancada atrás de padrões, e lentamente enlouquece tentando libertá-la — ou libertar-se.
Ao escrever o conto, Charlotte subverteu o diagnóstico. Recusou-se a silenciar. E transformou o que a sociedade queria que fosse esquecimento em literatura. Décadas depois, ela mesma escreveria que seu texto havia sido enviado ao Dr. Weir Mitchell — na esperança de que ele repensasse suas práticas. Ela não sabia se ele leu. Mas o mundo leu.
O “Eu” que transborda: o gesto metalinguístico e o presente histórico
A inserção do “e Eu” no título é um gesto metalinguístico de grande força. Ele marca a fusão entre a personagem de Gilman e a mulher que a interpreta hoje. Gabriela Duarte não apenas encena uma narrativa histórica; ela entra em cena com sua própria história, como mulher e intérprete atravessada pelas violências simbólicas de seu tempo. Esse “Eu” não é decorativo — ele é testemunhal, e reverbera como um chamado: isso ainda acontece, e comigo também.
O espetáculo se vale desse ponto para construir um diálogo pungente entre a literatura e a vida. A voz em off da própria Gabriela cria uma camada sonora de dissociação: é como se houvesse uma consciência que observa e comenta, enquanto o corpo permanece aprisionado. Essa dissociação é, aliás, um dos sintomas da depressão feminina descrita por Gilman — e que hoje ainda marca tantas trajetórias silenciadas.
Direção firme, sensível e potente
A força da encenação está diretamente ligada à assinatura das diretoras Alessandra Maestrini e Denise Stoklos. Elas constroem um dispositivo cênico de contenção — Gabriela permanece confinada a um canto do palco, diante de uma tela translúcida — que amplia o efeito claustrofóbico e oferece uma experiência sensorial de enclausuramento ao público. O palco torna-se, assim, o quarto da personagem, mas também a cela simbólica onde tantas mulheres ainda se encontram, mesmo fora dos muros.
Maestrini e Stoklos não conduzem a peça por caminhos panfletários: elas confiam na dramaturgia do espaço, no silêncio carregado de sentido e nos pequenos rituais de dissolução que a personagem atravessa em cena. Há um rigor brechtiano na composição — não pelo efeito de distanciamento clássico, mas pela recusa da ilusão naturalista e pela proposição de um pensamento ativo, crítico, no espectador.
Essa direção não explica: tensiona. Não consola: incomoda. E faz isso com sobriedade e coragem estética, permitindo que a potência do texto original emerja, ao mesmo tempo em que inscrevem nele marcas do presente e da cena brasileira contemporânea.
Um espetáculo que reverbera
Gabriela Duarte entrega uma performance que não busca o aplauso fácil, mas uma reverberação mais funda — que não se resolve na emoção, mas ecoa como um som subterrâneo, intelectual e sensível, que percorre a consciência do público. Sua presença, contida e incendiária, é atravessada por tempos históricos e experiências encarnadas, transformando o palco num território simbólico de confronto.
Montar esse espetáculo hoje é reafirmar que o corpo feminino não é um receptáculo do delírio masculino — é um território de linguagem e existência. Um campo onde se disputa poder, autonomia, silêncio e voz.
No palco, o corpo feminino já não é refém do olhar alheio — ele se insurge.
Rasga o silêncio imposto, reescrevendo sua própria história.
Não há docilidade, só urgência. O corpo não pede passagem — ele ocupa.
A intenção da montagem é um brado contra a invisibilidade e um lampejo de futuros onde a liberdade já não seja utopia, mas chão firme.
O corpo feminino, quando se entende totalmente insubmisso, sugere a revolução.
Denise Stoklos, Gabriela Duarte e Alessandra Maestrini falam sobre ‘O Papel de Parede Amarelo e Eu’, primeiro solo de Gabriela (Foto: Priscila Prade)
SERVIÇO
O PAPEL DE PAREDE AMARELO E EU
Inspirado na obra de Charlotte Perkins Gilman
Com: Gabriela Duarte
Espetáculo de: Alessandra Maestrini e Denise Stoklos
Textos adicionais: Alessandra Maestrini
Produção: Nosso Cultural – Ricardo Grasson e Heitor Garcia
Figurinos: Leandro Castro
Cenografia: Marcia Moon
Assistente de Cenografia: Márcio Zunhiga (Espirro)
Pintura Artística: Rosimar Garcia
Desenho de Luz: Cesar Pivetti
Ambientação sonora e sonoplastia: Thiago Gimenes e Tiago Saul
Atuação Física e Preparação Corporal: Luis Louis
Assistência: Airen Wormhoudt
Assistência Artística e de Interpretação: Davi Giordano
Visagismo: Wilson Eliodorio
Perucas: Feliciano San Roman
Assistente de Perucaria: André Góis
Camarim: Elizabeth Chagas
Costura: Margarida Arcanja, Jorge Bautista
Palco: Gil Teles e Pedro Anthony Dias
Operação de luz: Rodrigo Pivetti
Operação de som: Henrique Berrocal
Comunicação Visual: André Stoklos
Consultoria Criativa: Kelly Vaneli
Redes Sociais: Jessica Christina
Gerenciamento: Lead Performance
Fotos: Priscila Prade
Vídeo: gaTÚ filmes
Assessoria de Imprensa: Adriana Balsanelli e Renato Fernandes
Coordenação de Projeto: Pipoca Cultural
Idealização: Gabriela Duarte
Temporada
De 28 de março a 01 de junho
Sextas às 21h | Sábados às 20h | Domingos às 18h
Local
Teatro Estúdio
Rua Conselheiro Nébias, 891 – Campos Elíseos – São Paulo/SP
Visite nosso Café Bistrô – aberto em dias de apresentação a partir das 17h


Um comentário
Noêmia Maestrini
Crítica abalizada com fôlego de conhecedor, não apenas da obra e do assunto, como igualmente dos trabalhos entrelaçados de Alessandra Maestrini e Denise Stoklos, atrizes de persi, e de Gabriela Duarte que, conhecida como atriz televisiva, neste palco enfrenta corajosamente — em monólogo desafiador — uma plateia exigente. O cenário de Marcia Moon traduz intensamente os embates interiores durante a construção da personagem que cresce à medida que o tempo avança (são 70 minutos de encenação). É possível ver a assinatura das diretoras no trabalho de grande entrega de Gabi, dando sustentação ao conteúdo do texto reivindicatório da libertação feminina do século XIX, ainda hoje em pleno movimento e pequenas vitórias conseguidas às duras penas. Parabéns a toda equipe de grande funcionalidade e sustentação dessa peça necessária, atual, belamente adaptada do conto the Charlotte Perkins Gilman, escritora americana e ela própria o modelo da narrativa trazida ao público pela adaptação de Alessandra Maestrini.
Se você ainda não foi ao Teatro Estúdio, da Rua Conselheiro Nébias, 891 , nos Campos Elísios, está na hora e você só tem até 1o de Junho. Va e leve os amigos com voce! Não perca, porque, depois, a peça vai viajar. Vá ao Teatro! Porque só a Arte nos salva!
(Noêmia Maestrini. 21.04.2025)