
Pai contra Mãe ou Você Está me Ouvindo?

Pai contra Mãe ou Você Está me Ouvindo?
O Coletivo Negro atualiza Machado de Assis em um espetáculo de força estética e denúncia pungente
Em um teatro pulsante de representatividade, Pai contra Mãe ou Você Está me Ouvindo?, espetáculo do Coletivo Negro, nos convida a ouvir — e ver — o que se recusa a desaparecer: as marcas da escravidão na estrutura da sociedade brasileira. Concebida, dirigida e coescrita por Jé Oliveira, a peça parte do conto homônimo de Machado de Assis e propõe um mergulho profundo nas engrenagens históricas que mantêm o racismo estrutural operando com vigor no presente.
Três intérpretes — Aysha Nascimento, Flávio Rodrigues e Raphael Garcia — assumem a narrativa com precisão, entrega e intensidade. A palavra e o corpo se alternam em um jogo cênico que convoca o público a uma escuta ativa e comprometida. A música original, executada ao vivo por Lua Bernardo (baixo acústico e sopros), Maurício Pazz (cordas) e Thiago Sonho (percussão e bateria), ajuda a compor — junto à iluminação de Mateus Brant, ao figurino de Éder Lopes e à cenografia assinada por Flávio Rodrigues — atmosferas únicas, a serviço de uma composição estética coesa e de forte impacto visual e sensorial.
O vídeo, concebido e operado por Bianca Turner, é utilizado com maestria ao longo do espetáculo. Longe de funcionar apenas como complemento visual, ele se articula com precisão às cenas, ampliando sentidos, sugerindo camadas, reforçando ritmos e atmosferas com inteligência cênica e refinamento técnico.
O conto de Machado de Assis, publicado em 1906 — dezoito anos após a abolição formal da escravidão no Brasil —, é uma peça crítica de grande potência. Machado, homem negro e principal voz da intelectualidade brasileira de seu tempo, escolheu tratar de um tema incômodo e ainda pulsante, num momento em que o discurso oficial já tentava apagar os horrores da escravidão sob o mito da democracia racial. Sua narrativa, seca e contundente, desmascara a naturalização da violência e mostra como o sistema escravocrata continuava a operar sob novas formas.

Na história, acompanhamos um homem empobrecido, de origem miscigenada, que sobrevive capturando escravizados fugidos. Ao entregar Arminda, uma mulher grávida que tenta escapar do cativeiro, ele garante sua subsistência às custas da liberdade e da vida de outro ser humano. A brutalidade do gesto, sustentada por uma lógica social doentia, ganha nova vida no palco do Coletivo Negro.
A peça atualiza esse conflito com contundência, mostrando como as relações hierárquicas e opressoras não pertencem apenas ao passado escravocrata, mas se adaptam aos dispositivos contemporâneos de controle social. A cena central — que aqui não descrevo em detalhes, para preservar seu impacto — evidencia como a estrutura do racismo permanece intacta, ainda que com roupagens modernas. O público é levado a reconhecer a permanência de uma lógica em que corpos negros são vigiados, suspeitados e, muitas vezes, colocados uns contra os outros por um sistema que opera sobre a escassez, a sobrevivência e o medo.
Esse reconhecimento do presente como continuidade do passado é um dos grandes méritos da obra. O espetáculo evita qualquer romantização. Ele tensiona a história e expõe a permanência das chagas abertas — não como um recurso narrativo, mas como um alerta necessário.
Essa constatação nos leva também a uma reflexão maior sobre a estrutura social brasileira. O Brasil foi o último país do mundo a abolir oficialmente a escravidão, e não por falta de resistência popular — que sempre existiu — ou por ignorância do absurdo. Ao contrário: a pressão inglesa e a conjuntura internacional forçaram a elite brasileira a elaborar um plano cauteloso e prolongado. Leis como a do Ventre Livre, dos Sexagenários e a proibição do tráfico negreiro não visavam a justiça, mas sim proteger os investimentos e garantir uma transição lenta que não ameaçasse a ordem econômica. A lógica de manutenção dos privilégios se perpetua: ainda hoje, quando mudanças se fazem inevitáveis, elas são cuidadosamente controladas para preservar os interesses de quem já detém o poder.
O espetáculo do Coletivo Negro, ao mostrar a atualização dessa violência, convoca o público a perceber a continuidade dessa engrenagem. E faz isso com arte. Com beleza. Com rigor. Não há improviso ou hesitação. Cada gesto, cada silêncio, cada narração é atravessado por uma escuta fina das camadas históricas e sociais que formam nossa paisagem coletiva.
O espetáculo cumpre com maestria sua tarefa de expor a chaga. E propõe um avanço sobre a sugestão — não apresentando a realidade como imutável, o que evita que o público caia em um lugar de impotência. Ainda assim, é possível desejar que o gesto final se estenda: que a arte — que já denuncia com tanto poder — também ouse, mesmo que sutilmente, indicar que o mundo pode ser outro.
Essa provocação não diminui em nada a grandeza da obra. Ao contrário, parte da admiração por um espetáculo que cumpre sua função social com dignidade e brilho. Pai contra Mãe ou Você Está me Ouvindo? é um desses trabalhos que não apenas atualizam um clássico — mas o colocam de pé diante do país que ainda o sustenta.
Que siga em temporada, em circulação, em debate. Que provoque incômodo e diálogo. Que sua escuta reverbere muito além da sala de teatro. Porque a pergunta — “Você está me ouvindo?” — merece eco. E o teatro, quando feito com tanta coragem e precisão, pode ser a resposta mais bonita e mais urgente.
Ficha técnica
- Idealização, concepção, dramaturgia e direção geral: Jé Oliveira
- Atuação: Aysha Nascimento, Flávio Rodrigues e Raphael Garcia
- Direção musical: Guilherme Kastrup
- Baixo acústico e sopros: Lua Bernardo
- Cordas (Bandolim e Guitarra Afro-Atlântica): Maurício Pazz
- Percussão e bateria: Thiago Sonho
- Composições originais: Jé Oliveira e Jonathan Silva
- Melodias: Jonathan Silva
- Preparação vocal: William Guedes
- Iluminação: Mateus Brant
- Figurino: Éder Lopes
- Cenografia: Flávio Rodrigues
- Vídeo e operação: Bianca Turner
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