Teatro

Uma canção indigesta servida com caldinho de feijão

Resenha do espetáculo Canção Indigesta, do Engenho Teatral

Assisti a Canção Indigesta ontem à noite, no Engenho Teatral. E saí de lá como quem atravessa uma tempestade lúcida: com o corpo mexido, o pensamento mobilizado e a sensação de que o teatro — esse que não se rende ao mercado — ainda pulsa como espaço de enfrentamento coletivo.

Não é fácil digerir o que é servido em cena. E nem deveria ser. O título da peça já avisa: trata-se de uma canção indigesta. Mas antes mesmo que o espetáculo comece, o grupo nos recebe com generosidade, oferecendo pastas veganas com torradas, suco de melancia bem fresco e cerveja. Mais tarde, já na segunda metade da noite, chega o caldinho de feijão. Nada disso é casual. A recepção é pensada como um gesto de hospitalidade radical: rompe as barreiras entre palco e plateia, dissolve hierarquias e nos convida à partilha. No centro do palco, uma mesa enorme reforça essa proposta. Tudo ali é convite — à escuta, ao convívio, à construção coletiva. O teatro começa antes da primeira fala. E ali, já está em cena uma outra lógica de mundo.

Este texto é também uma tentativa de prolongar a conversa iniciada ontem entre palco e plateia. Trago aqui meu olhar — que é também um corpo presente, uma espectadora que acredita que o teatro ainda pode ser lugar de consciência e de transformação. Canção Indigesta me tocou por dentro. E me deu fome de luta.

O trem das contradições

O que se segue à acolhida fraterna é uma sucessão de cenas fragmentadas, costuradas não por um fio narrativo convencional, mas por uma inquietação partilhada: como é possível reconhecer-se como classe num mundo que nos empurra para o individualismo, a competição, a despolitização? O Engenho Teatral não busca resposta fácil — oferece, ao contrário, perguntas amargas, irônicas, às vezes dolorosas, como quem entrega ao público não um espelho, mas uma lupa crítica.

A primeira fala da peça, dita com calma e firmeza por Irací Tomiatto, já deixa claro que as “questões que ninguém quer se servir” serão trazidas à mesa. E são mesmo. Entre comes e bebes, recebemos também uma carta escrita por um chuchu, uma aula silenciosa sobre a luta de classes embutida nos vegetais do supermercado. Sim, há humor — e ele é precioso —, mas há também um estranhamento que não nos permite naturalizar nada. Como na melhor tradição brechtiana, rir aqui é um caminho para pensar mais fundo.

Zé Ninguém e Cabeça — dois personagens que se dobram sobre os dilemas do eu fragmentado, da precarização e da mediação ideológica — costuram reflexões sobre identidade, mídia, consumo, e sobretudo sobre trabalho. São esses corpos, ora palhaços, ora narradores, ora vítimas e algozes de si mesmos, que nos conduzem pela peça como se estivéssemos numa viagem de trem: há paradas, curvas, e um destino que não se alcança porque talvez ele precise ser construído.

O erro persistente do teatro político

Há um erro recorrente em parte significativa do chamado teatro político: a simples exposição das mazelas sociais da sociedade capitalista, como se bastasse mostrá-las para gerar consciência. Essa é uma armadilha antiga — e foi justamente contra isso que Brecht se insurgiu ao criticar o naturalismo de Zola, que reproduzia as condições de opressão sem fornecer instrumentos de pensamento ou saída dialética. O teatro, quando apenas constata a realidade, sem tensioná-la, corre o risco de reafirmar a impotência.

Esse erro persiste até hoje. Muitas montagens mostram a pobreza, o racismo, a violência, a alienação — mas o fazem de maneira naturalizada, quase documental, sem abrir espaço para imaginar outros caminhos. Canção Indigesta rompe com isso. O Engenho Teatral não apenas denuncia: ele historiciza, ironiza, contrapõe. Aponta contradições, desmonta certezas, projeta possibilidades. Seu teatro é dialético na forma e no conteúdo. E, por isso mesmo, profundamente político.

Pensar precisa de tempo

Uma das cenas mais marcantes é a do trabalhador que tenta trocar uma lâmpada enquanto uma intelectual lê um texto político ao fundo. O ruído do esforço invisibiliza o discurso — e o efeito é avassalador. Ali está sintetizado o abismo entre quem elabora e quem sofre as condições materiais do mundo do trabalho. E o Engenho, ao invés de explicar esse abismo, nos faz senti-lo.

Outra cena emblemática é a do vendedor de churrasquinho que diz “escolher” sua condição precária como liberdade. Quantos de nós já não romantizamos nossas próprias derrotas? A peça vai além: revela como o discurso do empreendedorismo e da meritocracia coloniza a subjetividade do trabalhador, impedindo a consciência de classe e, com ela, a possibilidade de ação coletiva.

Há ainda a denúncia crua do poder financeiro, a lembrança da dívida pública como roubo legitimado, a crítica à substituição da cidadania pelo consumo. Mas o espetáculo não nos deixa no desespero.

É nesse ponto que a peça surpreende — e se eleva. Em meio a tantos diagnósticos ácidos sobre o presente, o Engenho arrisca um gesto utópico: apresenta a inteligência artificial como possível libertadora da humanidade. Se o trabalho sempre nos foi apresentado como castigo, controle, dor — do tripalium latino à “carreira” que nos consome — a IA poderia ser a ruptura desse ciclo. Desde que, claro, não esteja nas mãos dos mesmos de sempre. A peça lembra que “ócio”, em grego, é scholé: escola. Pensar requer tempo. E talvez seja a IA, se democratizada, que poderá nos devolver esse tempo perdido. Um tempo de vida, de estudo, de criação, de pausa. Um tempo de humanidade.

Essa inversão não é leve. Nem ingênua. Ela tem o peso do que é urgente: se não tomarmos para nós os frutos do avanço técnico, seremos triturados por ele. O que a cena propõe, então, é uma escolha de civilização. E ela nos inclui.

Lavar a louça, partilhar o mundo

Ao final, o caldinho de feijão é novamente servido. E o público, convidado a ajudar a lavar a louça. É simbólico — e prático. O teatro, aqui, não é serviço nem mercadoria: é comunhão. É trabalho coletivo. É espaço de resistência.

Canção Indigesta é, de fato, indigesta. Porque é feita para provocar refluxos na alma adormecida. Mas é também profundamente nutritiva. Porque nos alimenta de perguntas urgentes, de partilha, de possibilidade.

O Engenho Teatral segue na contramão da história dominante. E é justamente por isso que seu teatro importa tanto. Em tempos de fragmentação, ele junta os cacos. Em tempos de espetáculo vazio, ele oferece um banquete de pensamento. E o faz com fé na plateia — essa que, como eu, saiu dali com o gosto do feijão, do afeto e da luta na boca.


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