Teatro

Gente é Gente?! – Quem manda aqui? O Carnaval armado do poder

Análise crítica de “Gente é Gente?!”, livre adaptação de Brecht dirigida por Marco Antonio Rodrigues

Gesualdo Brilhante em cena
Gesualdo Brilhante: bondade que vira alvo.

Gente é Gente?!, dirigido por Marco Antonio Rodrigues, propõe uma releitura potente de Um Homem é um Homem, de Bertolt Brecht. Mais do que atualizar, a peça desloca com precisão os eixos dramatúrgicos e históricos da obra original para uma conjuntura específica: o Brasil de 2025. E isso não é apenas simbólico. É preciso lembrar que, neste exato momento, comandantes militares brasileiros estão sendo julgados por tentativa de golpe de Estado — algo inédito na história da República.

Na peça de Brecht, situada na Índia sob domínio britânico, a crítica recai sobre o militarismo colonial e a capacidade de desumanização operada pelos sistemas de poder. A montagem de Rodrigues atualiza esse núcleo central ao transpor a trama para o Brasil contemporâneo, mantendo, no entanto, a função essencial do exército como engrenagem colonial: uma força de repressão a serviço do capital internacional, organizada para conter qualquer tentativa de reorganização popular e construção de uma sociedade mais justa.

O protagonista Gesualdo Brilhante, vivido por Aílton Graça/Paulo Américo, é um motorista de aplicativo — sujeito social exposto à precarização, à vigilância algorítmica e à manipulação simbólica. Sua “bondade” e passividade, longe de salvá-lo, são justamente o que o torna útil à máquina repressora. Os soldados — Tonho Tropeiro, Paulo Horta e Jesse Silvano (Caio Silviano, Fernando Nitsch, Rodrigo Scarpelli – os três excelentes) — são operadores desse sistema: não são indivíduos com vontades próprias, mas engrenagens da máquina disciplinadora.

Sargento Sanguinário é um dos personagens de Dagoberto Feliz, que se desdobra em múltiplas figuras e atua como um corifeu desmembrado: sua performance se fragmenta e se distribui como parte da própria estrutura de poder, convertendo-se em instância narrativa e disciplinadora ao mesmo tempo.

A substituição do templo budista por um terreiro de Candomblé é, por si só, um gesto político e estético de grande densidade. Não apenas por reconhecer o lugar da religiosidade afro-brasileira como espaço de resistência simbólica, mas por inserir a espiritualidade ancestral dentro da lógica de apagamento operada pela estrutura militar. A dança dos orixás surge como expressão de vida e transcendência — que, mesmo assim, não impede a lógica da guerra de avançar. Jeremias Leite (Barroso), que permanece com a cabeça presa no espaço simbólico do terreiro, opta por ficar. A escolha, ainda que involuntária, revela-se um gesto de libertação diante da lógica bélica que o esperava.

As mulheres merecem uma menção especial. Kátia Naiane se alterna entre Marta — esposa de Gesualdo, que vê seu marido desaparecer — e uma das assistentes de Dona Amorosa. Está excelente, assim como Joice Jane Teixeira, que interpreta Mãe Elza no terreiro e a outra assistente. Nábia Villela vive Dona Amorosa, uma matriarca das encruzilhadas que impõe sua presença com autoridade e humor.

Outro acerto da montagem é a presença de um homem negro no centro da narrativa. Isso não é apenas representatividade: é coerência estrutural. No Brasil, a desumanização não é apenas uma abstração ideológica — ela tem cor, endereço, histórico de violência. A transformação de Gesualdo em soldado padrão revela como os corpos negros são alvos prioritários da máquina repressora.

A encenação opera numa estética farsesca e carnavalesca, mas sem anestesiar o conteúdo. Pelo contrário: o uso do carnaval como forma acentua o contraste entre festa e repressão, entre liberdade aparente e controle efetivo. O palco se torna uma espécie de avenida — espaço alegórico onde a guerra e a celebração convivem, mas onde é a guerra que dita as regras do jogo. A leveza é apenas disfarce.

A trilha sonora de Zeca Baleiro reforça essa construção. Mistura samba, bolero, tango, ponto de umbanda, ciranda — não como fundo musical, mas como instrumento narrativo e político. Os instrumentos musicais se tornam armas simbólicas, disparam sentidos, conduzem cenas, e compõem com a ação dramática um corpo sonoro que participa da opressão e da denúncia. A música, aqui, não suaviza. Ela arma.

A montagem evita o psicologismo, evita a catarse, evita o conforto. É Brecht com consciência histórica. Não há dúvida de que estamos diante de uma encenação dialética, feita por quem conhece Brecht, mas fala a partir de sua própria tradição crítica e popular. Marco Antonio Rodrigues conduz a cena com domínio de forma e conteúdo. Nada sobra. Nada falta. A assinatura do espetáculo é dele — e é forte.

A adaptação assinada por Claudia Barral é um excelente ponto de partida. Mas é a cena — a direção, a presença dos corpos, o trabalho dos atores e da equipe — que constrói o que de fato está em jogo.

Cabe lembrar que tanto Marco quanto o elenco são egressos do que há de melhor no teatro de grupo paulistano. Deste caldo cultural surgiram grandes espetáculos, como Otelo, também dirigido por Marco e protagonizado por Aílton Graça. Montagens muito distintas, mas que demonstram a amplitude e o brilhantismo do encenador.

No Brasil de 2025, onde a memória da ditadura ainda estrutura o presente e os militares finalmente são confrontados por seus crimes, Gente é Gente?! torna-se não apenas atual, mas urgente. É um espetáculo que pergunta: o que é necessário para transformar uma pessoa em outra coisa? Mas vai além. Mostra que essa transformação já está em curso — silenciosa, travestida de oportunidade, de ordem, de progresso.

E ao fazê-lo, insiste: é preciso resistir. É preciso dizer não. É preciso, apesar de tudo, continuar sendo gente.

Cena do ensaio - Gente é Gente?!
Estética ensaiada com precisão: o ensaio já trazia a densidade que a montagem atingiu.
Elenco completo em cena final
O elenco reunido: um coro plural e politicamente afiado.

Ficha Técnica

Texto: Livremente inspirado na obra “Um Homem é um Homem”, de Bertolt Brecht
Autora: Claudia Barral
Dramaturgista: Silvia Viana
Direção: Marco Antonio Rodrigues
Trilha Sonora e Direção Musical: Zeca Baleiro
Cenografia: Márcio Medina
Figurinos: Cássio Brasil
Iluminação: Gabriele Souza
Preparação Corporal e Coreografias: Kátia Naiane
Assistência de direção: Luana Freire
Produção Executiva: Daniele Carolina Lima
Diretor de Produção: Luís Henrique Luque Daltrozo

Elenco:

  • Aílton Graça / Paulo Américo – Gesualdo Brilhante
  • Barroso – Jeremias Leite, Cabo, Assistente Sargento Sanguinário
  • Caio Silviano – Tonho Tropeiro
  • Dagoberto Feliz – Sargento Sanguinário
  • Fernando Nitsch – Paulo Porta
  • Joice Jane Teixeira – Mãe Elza, Assistente Dona Amorosa
  • Kátia Naiane – Marta, Assistente da Dona Amorosa
  • Nábia Villela – Dona Amorosa
  • Rodrigo Scarpelli – Jesse Silvano

Temporada: de 29 de março a 4 de maio de 2025
Local: Teatro Antunes Filho – Sesc Vila Mariana
Duração: 100 minutos
Sessões: Quinta a sábado, às 21h. Domingos e feriados, às 18h
Classificação: 16 anos


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