Teatro

Espião Silenciado: Um Ensaio | Teatro e História

Resenha –

Um teatro que escava o passado para iluminar o presente

“Espião Silenciado: Um Ensaio” não apenas resgata uma história quase esquecida — a morte misteriosa de um agente duplo às vésperas do golpe de 1964 — como ilumina, com rigor e sensibilidade, um dos aspectos menos debatidos da preparação militar para a tomada de poder: a articulação prévia dos quartéis, o uso estratégico do anticomunismo como tática de desestabilização e, sobretudo, o apoio silencioso e decisivo do governo dos Estados Unidos à ruptura democrática no Brasil. Trata-se de um teatro de investigação, que nos faz pensar não só sobre os mortos da história, mas também sobre os silêncios que ainda nos governam.

Os relatos que ouvimos sobre o início dos anos 1960, antes do golpe, descrevem um Brasil vibrante, cheio de promessas: uma juventude politicamente engajada, universidades efervescentes, um teatro crítico em expansão, o Cinema Novo rompendo com estéticas colonizadas, e um governo progressista que começava a tocar em questões estruturais como reforma agrária, soberania econômica e alfabetização popular. Havia conflito, sim — mas também havia projeto. Havia potência.

O que raramente se comenta é que, enquanto isso acontecia à luz do dia, o golpe já era gestado no subsolo dos quartéis e dos gabinetes diplomáticos. Oficiais de alta patente mantinham reuniões discretas com setores conservadores da sociedade civil, enquanto recebiam formação ideológica e estratégica dos EUA, sob a doutrina de segurança nacional. Washington não aceitaria mais um país latino-americano “alinhado com Moscou”, especialmente o maior deles. E o Brasil, com toda a sua ousadia cultural e suas reformas de base, parecia, para os olhos frios do imperialismo, um risco em expansão.

Cena investigativa com atores analisando documentos históricos

É neste pano de fundo — e de sombras — que se inscreve Espião Silenciado: Um Ensaio. A peça escava uma dessas histórias soterradas: a queda (literal e simbólica) de um homem que poderia revelar os bastidores da traição. Ao acompanhar os passos do espião e de seu investigador, o espetáculo nos leva a um Brasil onde o futuro ainda estava em disputa — e nos pergunta, com delicadeza e urgência, o que fizemos desse futuro.

O Teatro d’Água não se limita a reconstituir um caso intrigante de 1963. O grupo estudou minuciosamente o período e, com inteligência cênica, traçou um paralelo inquietante com o Brasil de hoje. A história se repete não por acaso, mas por estrutura: sempre que o país ensaia algum avanço real das classes menos privilegiadas — seja pelo voto, pela cultura ou pela redistribuição de renda — as forças reacionárias se organizam para conter esse movimento. E o fazem com os mesmos instrumentos: desinformação, sabotagem institucional, manipulação religiosa e, se preciso for, violência aberta.

Um destaque necessário vai para a direção de João Alves, que conduz a encenação com notável domínio do foco narrativo. Seu trabalho revela rigor e sensibilidade: sabe onde silenciar, onde cortar, onde respirar. Em vez de impor-se, a direção organiza — com precisão artesanal — o diálogo entre passado e presente, entre documento e imaginação. É esse equilíbrio que sustenta a densidade do espetáculo sem perder o espectador.

Como disse Brecht, “o fascismo é uma cadela que está sempre no cio”. Ela estava em 1964. Ela está hoje. E olhar para 1963 — para as tramas que antecederam o golpe — é uma forma de decifrar o presente. A peça transforma um caso quase esquecido em um modelo dramático: um espelho escuro, onde nos vemos com mais clareza.

Ator em cena híbrida entre ensaio e apresentação

Anticomunismo e Paranoia Política no Brasil: Uma Análise Histórica de Estratégias de Poder

O motor que permite o sucesso das ações militares em 1964 — e novamente em 2013 — é o mesmo: a ameaça comunista. Uma ameaça que, na prática, nunca se concretizou como força dominante no Brasil. Ainda assim, sua evocação serviu (e segue servindo) como justificativa eficaz para o medo, a repressão e a manutenção da ordem conservadora.

Desde a década de 1930, o anticomunismo tem sido um instrumento recorrente na política brasileira, servindo tanto para justificar repressões estatais quanto para consolidar projetos de poder das elites. Esse fenômeno não é aleatório: está enraizado em uma tradição autoritária que se manifestou com força durante a Era Vargas, se aprofundou com o Golpe de 1964 e ressurge com intensidade a partir das manifestações de 2013, adaptando-se às dinâmicas contemporâneas.

Durante o Estado Novo, a Intentona Comunista de 1935 foi usada como pretexto para instaurar uma ditadura — criminalizando sindicatos, movimentos camponeses e intelectuais. Após 1945, mesmo na democracia, o espectro comunista continuava a ser útil: o PCB foi cassado em 1947. Mas foi em 1964 que o anticomunismo alcançou seu ápice como doutrina de Estado. Sob a lógica da Doutrina de Segurança Nacional, qualquer demanda social era rotulada como “subversão”.

No século XXI, a partir de 2013, esse fantasma é reanimado — mas agora com outro corpo. Redes sociais amplificam boatos, mensagens cifradas associam programas sociais a um suposto projeto de poder esquerdista, e palavras como “marxismo”, “ideologia de gênero” ou “comunismo” tornam-se gatilhos para paranoia coletiva. Com isso, o anticomunismo deixa de ser uma ideologia coesa e passa a operar como um significante flutuante (conceito psicanalítico para símbolos sem significado fixo), útil à manipulação de massas.

Esse tipo de discurso beneficia elites econômicas e grupos políticos conservadores. Ele desvia a atenção da desigualdade estrutural, da destruição ambiental, da precarização do trabalho. Enquanto o povo debate fantasmas, as reformas neoliberais avançam em silêncio. Como disse Perry Anderson: “o anticomunismo sempre foi a forma mais barata de conservadorismo”. No Brasil, ele segue sendo um dos preços mais altos pagos pela democracia.

“Espião Silenciado: Um Ensaio” compreende isso com nitidez. Sua encenação traz esse imaginário à luz — não como denúncia panfletária, mas como mecanismo dramatúrgico de exposição. Ao mostrar como um inimigo imaginário pode justificar golpes concretos, a peça nos ensina a decifrar o medo, e a não ceder ao poder que dele se alimenta.

Momento culminante da peça com iluminação intensa

Ao fim, Espião Silenciado: Um Ensaio nos oferece uma lição que ultrapassa o caso em questão. Trata-se de um teatro que acredita na inteligência do público, na história como campo de disputa e na arte como forma de resistência. Uma peça urgente — não porque dramatiza o passado, mas porque nos convoca, sem rodeios, a decidir o que ainda faremos com o presente.

Ficha Técnica

Dramaturgia: Inspirada na dissertação de Raphael Alberti
Direção e Organização Dramatúrgica: João Alves
Elenco: Arô Ribeiro, Manuel Boucinhas, Rodrigo Ramos, Luiz Campos
Cenário e Figurinos: Julio Dojcsar
Trilha Sonora Original: Danilo Pinheiros
Iluminação: João Alves e Lívia Nunes
Produção: Vanda Dantas
Arte, Fotos e Vídeo: Paulo Brazyl

Serviço

Temporada: 3 de maio a 1º de junho de 2025

Local: Teatro de Arena Eugênio Kusnet – Rua Dr. Teodoro Baima, 94, Vila Buarque – São Paulo/SP

Horários: Sextas e sábados às 20h; domingos às 18h

Ingressos: R$ 40 (inteira) | R$ 20 (meia) | Gratuito para estudantes de escolas públicas

Apoio: FUNARTE

Resenha escrita por Márcio Boaro
Publicado em 15 de maio de 2025

Um comentário

  • JR Arô Ribeiro JR

    Márcio, você nos toca e nos deixa mais esclarecidos no entendimento do que levamos ao palco. Viva o teatro de Grupo. Viva os que escrevem sobre o teatro. Obrigado.

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