
Restinga de Canudos – A Cocanha Cabocla do Teatro Brasileiro
Logo nos primeiros minutos de Restinga de Canudos, a plateia é convidada a partilhar um enorme cuscuz nordestino com leite de coco. No gesto de servir a comida — fazem uma brincadeira de muito bom tom com a hospitalidade do povo brasileiro, dizendo que foi feita para 14 (o elenco), mas que alimenta com boa vontade 134 (o elenco mais os 120 espectadores) — o espetáculo inaugura sua partilha de sonho: “nos sonhos de Conselheiro, cabia todo mundo.” Esse sonho de uma Cocanha cabocla é posto desde o início. Mesmo sem nomeá-lo claramente, o espetáculo, assim como os sonhos do beato, evoca a terra mítica da Idade Média — onde rios de leite e mel corriam ao lado de montanhas de comida, e ninguém precisava trabalhar para viver com alegria. É ao mesmo tempo utópica e ancestral. Uma poética da fartura em meio à miséria. É a beleza do sonho que move a cena.

Foto de Flávio Barollo
Durante os últimos 30 anos, desenvolveu-se em São Paulo uma vertente muito própria do teatro épico de Brecht. E talvez nenhum grupo tenha realizado uma obra tão coerente e afetiva dentro dessa tradição quanto a Cia. do Tijolo. Restinga de Canudos é prova disso. Em vez de explorar apenas o massacre, o espetáculo reconstrói — em cena, em canto, em dança e em diálogo com o público — a vida, os afetos e os sonhos que precederam a tragédia. A peça não trata apenas de uma das esquinas mais obscuras da história do Brasil. Ela ilumina o caminho até essa esquina, percorre a estrada com o público e convida cada pessoa a pensar: que mapa era aquele? Quem o desenhou? A serviço de quem?

Foto de Alécio Cézar
É um trabalho exemplar de camadas sobrepostas, que permite a fruição estética mais imediata — com músicas belíssimas, cenas potentes e interpretações profundamente sensíveis — sem abrir mão do pensamento, da crítica e da provocação histórica. A história de Canudos é apresentada primeiro como lembrança: “o que você sabe sobre Canudos?” Depois, como reconstrução crítica: “quem lhe contou isso? Com quais palavras? Com qual intenção?”
A peça constrói esse percurso a partir de duas professoras, figuras centrais na dramaturgia do grupo e herdeiras da ética freireana que marca a Cia. do Tijolo desde sua fundação. É por meio delas que conhecemos o cotidiano da vila: sertanejos, ex-escravizados, indígenas, poetas, beatos — uma comunidade plural que ousou viver de outro modo. Não era um bando de fanáticos. Eram pessoas comuns tentando viver com dignidade. E havia escolas, havia estudo. Conselheiro acreditava na importância do conhecimento. É isso que torna sua proposta ainda mais insuportável aos olhos do poder.

Foto de Alécio Cézar
A dramaturgia é modelar. Não há concessões ao didatismo raso, tampouco elitismo hermético. A peça é profundamente clara, mas nunca simplista. O espectador sente e entende, simultaneamente. Isso é resultado de uma arquitetura dialética precisa, como propunha Brecht em sua fase madura: o espetáculo deve ensinar algo, mas sem parecer aula. Deve emocionar, mas sem dissolver o pensamento em sentimentalismo. Restinga de Canudos caminha exatamente nessa direção.
A relação com Os Sertões, de Euclides da Cunha, é colocada em cena com elegância crítica. Euclides foi o primeiro a narrar Canudos para a nação. E, embora sua obra tenha o mérito de tornar visível uma tragédia, carrega consigo os vícios de sua época: eugenismo, determinismo racial, preconceito. Ele chamou os sertanejos de “degenerados”, viu neles uma ameaça à modernidade da jovem República. Ainda assim, paradoxalmente, tentou denunciar a violência de um Estado que esmagava os pobres em nome da ordem. Restinga de Canudos resgata esse paradoxo — mas o atravessa. Vai além de Euclides. E, ao fazer isso, recoloca o sertanejo como protagonista de sua própria história.

Foto de Alécio Cézar
O espetáculo também faz um paralelo sutil — mas profundamente político — com o presente. Se antes a República temia um vilarejo que não queria pagar impostos, hoje vemos discursos conservadores travestidos de racionalidade tentando apagar projetos comunitários e alternativas de existência. Só que agora sem as boas intenções de Euclides.

Fotos de Alécio Cézar
Com poemas, cenas narrativas e canções que comovem, a Cia. do Tijolo faz aquilo que o teatro brechtiano sonhava: constrói uma experiência em que pensar é prazeroso, em que aprender é bonito, em que sonhar é revolucionário. E, ao nos servir um pedaço de cuscuz logo na entrada, nos convida não só a ver, mas a partilhar. Como quem diz: “se você não puder sonhar Canudos comigo, sonhe sua própria Cocanha. Mas sonhe.”
Ficha Técnica
Criação e dramaturgia: Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante
Direção geral: Dinho Lima Flor
Elenco: Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante, Karen Menatti, Odília Nunes, Artur Mattar, Jaque da Silva, Danilo Nonato, João Bertolai, Marcos Coin, Dicinho Areias, Jonathan Silva, Juh Vieira
Atriz colaboradora: Vanessa Petroncari
Movimento e corpo: Viviane Ferreira
Composições originais: Jonathan Silva
Direção musical: Cia. do Tijolo e William Guedes
Cenário: Cia. do Tijolo e Douglas Vendramini
Figurino: Cia. do Tijolo e Silvana Marcondes
Iluminação: Cia. do Tijolo e Rafael Araújo
Som: Hugo Bispo
Fotos: Alécio Cézar e Flávio Barollo
Design gráfico: Fábio Viana
Assessoria de imprensa: Rafael Ferro e Pedro Madeira
Produção: Suelen Garcez (Garcez Produções)
Serviço
Espetáculo: Restinga de Canudos, com Cia. do Tijolo
Temporada: De 14 de março a 27 de abril de 2025
Horários: Sextas e sábados, às 20h / Domingos, às 17h
Local: Sala de Espetáculos 2 – Sesc Belenzinho (Rua Padre Adelino, 1000 – Belenzinho, SP)
Ingressos: R$ 50 (inteira), R$ 25 (meia), R$ 15 (Credencial Sesc)
Venda: sescsp.org.br e nas bilheterias das unidades
Duração: 150 minutos
Classificação: 12 anos
Estacionamento: R$ 8 (credenciados) ou R$ 17 (não credenciados) a primeira hora
Transporte público: Metrô Belém (550m), Estação Tatuapé (1400m)
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