Teatro

A Rosa Mais Vermelha Desabrocha e a Necessidade do Humor Feminino no Brasil

O humor brasileiro tem raízes profundas no teatro de revista, na chanchada e no rádio, mas sempre girou em torno do protagonismo masculino. As mulheres, quando presentes, costumavam ocupar papéis coadjuvantes, seja como musas ou como objeto da disputa entre os homens. A Rosa Mais Vermelha Desabrocha, inspirada na HQ de Liv Strömquist, rompe com essa lógica ao apresentar um humor ágil e inteligente, conduzido inteiramente por quatro atrizes — Bianca Lopresti, Carolina Splendore, Fernanda Viacava e Lenise Oliveira. Com precisão e um excelente timing cômico, elas dominam o jogo cênico, subvertendo expectativas e reafirmando a força do protagonismo feminino no riso.


O espetáculo se baseia em um texto sueco, mas soube se ambientar com fluidez ao contexto brasileiro. O mérito está não apenas na adaptação, mas na maneira como o elenco transita pelo humor sem apelar para estereótipos ou caricaturas fáceis. A comédia se desenrola em ritmo certeiro, com as atrizes demonstrando sintonia e consciência do tempo da cena, uma das qualidades mais difíceis de se atingir no teatro cômico. A direção de Ale Paschoalini é correta, permitindo um equilíbrio onde o texto e o elenco se destaquem sem excessos.

A criação de um humor feminino no teatro brasileiro é um ato político essencial, pois desestabiliza as relações de poder do patriarcado, uma estrutura ideológica historicamente vinculada às relações materiais da sociedade. O materialismo dialético permite compreender como essas relações moldaram a exclusão das mulheres de espaços criativos, como o humor, relegando-as a papéis passivos no imaginário cultural.

Esse apagamento, no entanto, não ocorreu sem tensões. Isabella Andreini, dramaturga e atriz da commedia dell’arte, foi uma exceção tão única que, ao invés de romper com esse padrão, apenas o evidenciou: mulheres podiam existir no humor, mas como casos isolados, sem constituir uma tradição própria.

Se olharmos para o Brasil, nossas raízes cômicas remontam a autores como Martins Pena e Artur Azevedo, que ajudaram a construir um humor tipicamente nacional. No entanto, ainda que suas peças tenham mulheres fortes e perspicazes, essas personagens raramente estavam no centro da ação. O humor feminino como protagonista é uma construção recente, ainda em processo de consolidação.

O humor feminino, ao ser produzido e protagonizado por mulheres, não apenas desafia as narrativas dominantes, mas também expõe as contradições de uma sociedade que ainda sustenta desigualdades de gênero. Trata-se de uma forma de praxis que une crítica e ação, transformando o palco em um espaço de resistência e reflexão. Não é apenas uma forma de denúncia, mas também de reconstrução simbólica.

Ainda que a peça não se apresente como uma obra com preocupações políticas evidentes, seu valor político está justamente em existir. O humor feminino, quando não reduzido a clichês ou a papéis preestabelecidos, é um avanço necessário. Esse espetáculo reafirma que as mulheres podem conduzir a comédia com domínio absoluto, sem precisarem ser secundárias ou meros enfeites para o riso alheio.

Quebrar as barreiras do patriarcado através do humor é crucial para que novas sínteses culturais emerjam, equilibrando a subversão com a empatia, sem cair no panfletarismo. Afinal, o riso, nesse contexto, é uma ferramenta poderosa de transformação social.

A leveza do espetáculo não deve ser confundida com descompromisso. Pelo contrário, há um compromisso evidente com a qualidade e com a força da comédia bem construída. A peça pode não carregar um discurso abertamente militante, mas insere-se, por si só, em um contexto de resistência e renovação. Ao dar espaço para um humor feminino que joga, ironiza e se reinventa, A Rosa Mais Vermelha Desabrocha floresce como um acerto — e um avanço — dentro do cenário teatral brasileiro.

Ficha Técnica

HQ original: Liv Strömquist
Concepção & Dramaturgia: Bianca Lopresti e Ale Paschoalini
Produção: Mariana Cassa
Colaboração dramatúrgica: Ligia Souza
Dramaturgista: Fernanda Rocha
Diretor artístico: Ale Paschoalini
Assistente de direção: Isabel Wolfenson
Atrizes: Bianca Lopresti, Carolina Splendore, Fernanda Viacava e Lenise Oliveira
Diretora de movimento: Paula Picarelli
Diretora de arte: Fabiana Egrejas
Cenografia & Contrarregra: Priscila Alcebíades
Figurino: Julia Cassa
Maquiagem e Cabelo: Daniela Gonc & João Marcos Oliveira – Assistente: Karina Martins
Iluminação: Lui Seixas
Projeção: Ivan Soares
Som: Leandro Simões
Perfumista: Cristian Alori – IFF (International Flavors & Fragrances)
Fotografia: Helena Wolfenson
Realização: Cuco Filmes

Temporada no Sesc Santana até 16/03

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