SESC,  Teatro

A dialética dos Papas em cena

O encontro de duas forças teatrais

Assistir a *Dois Papas* no Sesc Guarulhos foi um evento de grande expectativa para mim. Zé Carlos Machado e Celso Frateschi são dois atores que acompanho há décadas e que, além de possuírem um domínio técnico absoluto, trazem ao seu trabalho um compromisso constante com o teatro como espaço de reflexão social. Ambos fazem parte da tradição paulistana de atuação que equilibra o rigor da construção cênica com a fluidez do jogo vivo, e ver essa interação em cena foi um privilégio.

O trabalho de Machado como Bento XVI e Frateschi como Francisco não é apenas um embate entre dois personagens históricos, mas um encontro de estilos interpretativos refinados. A precisão de cada gesto, cada pausa e cada nuance de intenção revela o quanto ambos são mestres da filigrana da atuação. São atores que compreendem a técnica do distanciamento brechtiano, utilizando-a sem jamais comprometer a organicidade da encenação. Quando necessário, eles se afastam do personagem para oferecer ao público uma visão crítica; quando o jogo pede, mergulham na representação com profundidade. Essa maleabilidade, essa capacidade de operar na dialética entre distanciamento e envolvimento, é um dos grandes trunfos dessa montagem.

Além dos dois protagonistas, a peça introduz uma contraparte feminina para cada papa: Irmã Brígida (Eliana Guttman), que dialoga com Bento XVI, e Irmã Sofia (Carol Godoy), que se relaciona com Francisco. Essas personagens funcionam como extensões do pensamento de cada um dos papas, mas também como contrapontos sutis, oferecendo um jogo rico e necessário à narrativa. A presença dessas duas freiras não é meramente expositiva; pelo contrário, estabelece um nível de complexidade adicional na cena. Elas atuam como mediadoras, apresentando o ponto de vista de cada papa e enriquecendo a perspectiva do público. Ambas realizam um excelente trabalho, garantindo que a cena tenha fluidez e coerência.

O sentido do espetáculo e a questão histórica

A peça, idealizada por Munir Kanaan e Rafa Steinhauser e dirigida por Munir, parte de um desejo de compreender diferentes visões de mundo e explorar o momento crucial em que a Igreja Católica precisou escolher entre continuidade e transformação. O contexto histórico é essencial para entender a força desse embate. A Igreja, uma instituição com mais de dois mil anos, carrega consigo um peso civilizatório que moldou profundamente o Ocidente. Analisar suas dinâmicas de poder não é apenas um exercício teológico, mas um estudo sobre os mecanismos de permanência e mudança em sistemas históricos complexos.

A escolha dos nomes papais é, por si só, um indicativo poderoso da condução de cada pontificado. Joseph Ratzinger adotou *Bento* em referência a São Bento de Núrsia, criador da *Regra de São Bento*, um código monástico que enfatiza o equilíbrio entre oração, trabalho e estudo. Sua escolha revela um desejo de continuidade e enraizamento na tradição. Jorge Bergoglio, por outro lado, rompeu com essa lógica ao escolher o inédito nome *Francisco*, evocando São Francisco de Assis, um santo associado à humildade, à pobreza e à preocupação com os marginalizados. Esse gesto indicava uma disposição à mudança, mesmo dentro de uma instituição cuja estrutura resiste a transformações bruscas.

A sucessão entre esses dois papas poderia ser lida como um movimento natural dentro da dialética da Igreja: após um líder conservador, a necessidade de renovação se impõe. No entanto, a renúncia de Bento XVI e a ascensão de Francisco tornaram essa transição atípica, dando ares de um ajuste interno mais profundo. A peça trabalha essa tensão de maneira inteligente, evitando maniqueísmos e simplificações. Francisco não é um revolucionário radical; sua figura pública sugere um movimento de transformação, mas dentro dos limites impostos pela própria instituição. A peça nos lembra que toda mudança dentro de estruturas históricas deve levar em conta os interesses internos, as contradições e os ritmos próprios da política institucional.

A transformação como necessidade

Se há uma mensagem central em *Dois Papas*, é a inevitabilidade da transformação. O movimento histórico não é um elemento externo às instituições, mas algo que as atravessa continuamente. A mudança não acontece de forma abrupta, mas por meio da contradição e da resolução progressiva de conflitos. Essa é uma lição que ultrapassa o universo da Igreja Católica e se aplica a qualquer sistema de poder: a estagnação é impossível, e a adaptação é uma necessidade histórica.

O espetáculo, ao retratar essa dinâmica de forças, não apenas apresenta um episódio da história recente, mas propõe uma reflexão sobre os mecanismos que regem a permanência e a mudança. Em tempos de incerteza e polarização, compreender como os sistemas se reconfiguram—e até que ponto essa reconfiguração é genuína—é essencial.

*Dois Papas* não se limita a ser um duelo de interpretações brilhantes, mas sim um estudo dramatúrgico sobre poder, tradição e transformação.

Serviço

A peça esteve em cartaz até hoje (16/03) no Sesc Guarulhos e segue para o Sesc Santo Amaro a partir da próxima semana.

Ficha técnica

Idealização: Munir Kanaan e Rafa Steinhauser 

Dramaturgia: Anthony McCarten 

Tradução: Rui Xavier 

Direção: Munir Kanaan 

Diretor assistente: Gustavo Trestini 

Elenco: 

Celso Frateschi (Cardeal Bergoglio, futuro Papa Francisco) 

Zécarlos Machado (Papa Bento) 

Carol Godoy (Irmã Sofia) 

Eliana Guttman (Irmã Brigitta) 

Participação em vídeo: Rafa Steinhauser 

Supervisão de Produção: Carol Godoy 

Coordenação administrativa: Dani Angelotti 

Coordenação de produção: Ana Elisa Mattos e Rita Batata 

Produção: Gengibre Multimídia e Zug Produções 

Patrocínio: Equifax / Boa Vista  Apoio Cultural: Molinos Rio de la Plata, Nieto Senetiner, QualiMais Lavanderias, Sacolão Campos Elíseos, Teatro Estúdio


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