Teatro

Gertrude, Alice e Picasso: ecos da geração perdida para os dias de hoje

Um espetáculo que costura o passado, o presente e a delicadeza do teatro como espaço de reencontro humano

Por Márcio Boaro

A peça mergulha na atmosfera da chamada “geração perdida”, nome com que esses próprios artistas se identificavam — um grupo de jovens criadores que, vindos de diferentes partes do mundo, se encontraram em Paris no período entre guerras. Eram sobreviventes do fim do século XIX e testemunhas da brutalidade da Primeira Guerra Mundial. Carregavam nos pés o barro do século anterior, mas nas mãos, as cores vibrantes das vanguardas. Viver e se expressar com liberdade era, para eles, uma urgência.

Elenco da peça no palco

Pablo Picasso (Joca Andreazza), Gertrude Stein (Barbara Bruno) e Alice B. Toklas (Patricia Villela)

Alcides Nogueira capta com rara inteligência esse momento histórico-cultural, e a nova montagem dirigida por Vanessa Gourlartt— neta de Nicette Bruno e filha de Bárbara Bruno, que protagoniza esta nova encarnação de Gertrude — aprofunda essa complexidade com delicadeza e vigor. Bárbara, ao lado de Patrícia Vilela e Joca Andreazza, dá vida a figuras históricas que, entre palavras, silêncios e ironias, se tornaram símbolo da arte moderna. O elenco está em perfeita sintonia e compreende profundamente a densidade dessas figuras, que são ao mesmo tempo ícones e pessoas.

Agradecimentos no palco com Vanessa Bruno

Elenco com a diretora Vanessa Goulartt

O mundo estava mais conectado do que nunca, ainda que distante da hiperconectividade atual. O rádio, o cinema, o telefone — essas novas tecnologias já permitiam uma circulação intensa de ideias e sensibilidades. E é justamente nesse caldo efervescente que se dá o encontro entre Gertrude Stein, Alice B. Toklas e Pablo Picasso. Em Paris, como também em Berlim e em outros centros criativos da época, a troca entre artistas era direta, viva, muitas vezes franca e sem filtros.

Um movimento que, guardadas as diferenças, ecoava também no Brasil modernista, onde, no mesmo período histórico, víamos a chegada de milhões de imigrantes, o crescimento da economia cafeeira e um novo desejo de identidade cultural. Mas se os cenários eram distintos, o anseio por reinvenção era comum. Aqueles que ousaram pensar e criar viram, com espanto e horror, a ascensão dos regimes fascistas. Sentiram na pele o peso de uma liberdade que ameaçava ser apagada.

Cena divertida entre Gertrude e Picasso

O texto e a montagem sabem e trabalham profundamente com essa complexidade. Mas o que torna essa nova encenação ainda mais potente é o deslocamento temporal que ela assume: 2025 não é 1996, tampouco 1920. Vivemos hoje, de forma inimaginável para os artistas daquela Paris ou mesmo para o público da estreia da peça, uma era de redes sociais, smartphones e inteligência artificial — e, paradoxalmente, também a ascensão global de ideologias fascistas, guerras e retrocessos.

A direção de Vanessa Goulartt parece consciente desse novo paradoxo: temos acesso a tudo, mas a troca humana rareou. E essa percepção não está apenas no subtexto — ela salta aos olhos logo no início, quando Alice usa um notebook como se fosse uma antiga máquina de escrever. O gesto revela um descompasso. Não é possível se manifestar hoje como se fazia antes. O espetáculo, com momentos sutis de distanciamento, quase nos convida a refletir: o que nos tornamos, com tanto acesso à informação e tão pouca presença real?

Bárbara Bruno como Gertrude em cena

Um detalhe visual chama atenção e adiciona uma camada de sentido à encenação: Joca Andreazza, como Picasso, aparece em cena atrás de uma tela de vidro, evocando — ainda que talvez inconscientemente — um célebre vídeo que circula no YouTube, em que vemos Picasso pintando um gato que se transforma em galo, diretamente no vidro. A imagem de hoje se conecta à do mestre pelo gesto. O que era pintura torna-se vídeo. O que era presença torna-se registro. A montagem, com isso, aproxima forma e tecnologia, memória e presente, provocando um diálogo com a era digital sem perder a espessura da criação artística.

Vanessa Goulartt nos entrega uma Gertrude Stein interpretada com força e sobriedade por Bárbara Bruno. A escolha estética da personagem, com uma imagem que pode ser lida como mais masculina, é respeitosa à figura histórica — uma mulher que, em seu tempo, optou por se apresentar de maneira a ser ouvida e respeitada num mundo ainda mais hostil às vozes femininas. Essa opção nunca apaga sua feminilidade, mas sim amplia sua potência. Gertrude era um gênio da escrita. E sua geração, longe de estar perdida, ecoa — por suas ideias, sua coragem e sua arte — cem anos depois.

Foto original de Gertrude Stein e Alice B. Toklas

Foto original de Gertrude e Alice

Gertrude, Alice e Picasso é um espetáculo necessário. Nos ajuda a pensar o presente, revisitando o passado com a lente da sensibilidade e da inteligência. Em tempos de excesso de informação e carência de sentido, o teatro nos oferece o que temos de mais raro: uma experiência humana compartilhada. E talvez por isso, ao final da apresentação, já nos agradecimentos, Bárbara Bruno nos emocione mais uma vez ao nos lembrar que o teatro ainda é esse lugar de encontro.

Serviço

  • Peça: Gertrude, Alice e Picasso
  • Autor: Alcides Nogueira
  • Elenco: Bárbara Bruno, Patrícia Vilela e Joca Andreazza
  • Direção: Vanessa Goulartt
  • Concepção original: Bárbara Bruno e Paulo Goulart Filho
  • Luz: César Pivetti
  • Fotos: Ronaldo Gutierrez
  • Caracterização: Beto França
  • Trilha composta: André Abujamra
  • Trilha sonora: Ricardo Severo
  • Onde: MI Teatro – Rua Pamplona, 310, Jardim Paulista – São Paulo/SP
  • Quando: De 07 de fevereiro a 05 de abril de 2025
  • Horários: Sextas e sábados às 20h

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