Teatro

Magma Jagunço: A permanência da brutalidade como identidade

Magma Jagunço: A permanência da brutalidade como identidade

Por Márcio Boaro.

Conheço e admiro o trabalho do Tablado há muitos anos. Este coletivo realiza uma pesquisa profunda sobre a base do que deseja expressar em sua dramaturgia. Os atores são verdadeiros coautores das obras, compreendendo não apenas suas próprias personagens, mas toda a estrutura e intenção da peça que apresentam. No caso de Magma Jagunço, o diretor e dramaturgo Clayton Mariano, junto ao elenco, realizou um belíssimo trabalho. 

(foto de divulgação)

O espetáculo é uma produção do Tablado (@tablado_sp), estreando no TUSP e dando continuidade à trajetória do grupo, que há anos desenvolve uma pesquisa estética e política profunda sobre o teatro. A peça mistura elementos do faroeste e do cinema brasileiro para abordar a construção da violência e do poder no Brasil, com um olhar crítico sobre os mecanismos históricos que sustentam essa estrutura. 

Ficha Técnica: 

  • Texto e direção: Clayton Mariano 

  • Elenco: André Capuano, Bruna Betito, Maria Tendlau, Rafael Lozano, Rodolfo Amorim e Vinícius Meloni 

A personagem Batista, um grande latifundiário, interpretada por André Capuano, e a personagem Ela, interpretada por Maria Tendllau, formam o núcleo, o magma de toda uma estrutura social que se manifesta em diversas culturas e localidades. Se olharmos para o nosso próprio quintal, os Bandeirantes, endeusados no século XX, não passavam de jagunços. Eles são a base da colonização do Sul e do Centro-Oeste brasileiro e, durante os primeiros séculos, eram vistos como uma praga na região das missões. ‘Paulista’ era sinônimo de escravizador de indígenas, e as bandeiras, como retratadas na escultura em frente ao Parque do Ibirapuera, eram um verdadeiro espetáculo de horrores. Magma Jagunço escancara como a brutalidade e a jagunçagem foram fundamentais para a formação da sociedade e como, com o tempo, esses elementos foram ressignificados culturalmente. Esta ressignificação é bem mostrada na peça quando comentam das sandálias Havaianas, que foram de símbolo de pobreza para objeto de status. Quando é interessante para o capital, os símbolos mudam. Um produto simples com uma marca forte e uma ótima margem de lucro era uma oportunidade que não poderia ser perdida. Essa lógica segue por diversas vias na nossa sociedade e foi interessante ter sido abordada. 

Batista carrega essa essência desde o início da colonização do Brasil. Mas essa matriz não se restringe ao território nacional: os cowboys americanos, exaltados pela cultura popular, compartilham dessa base truculenta. Essa estrutura patriarcal, machista e violenta se consolidou na colonização do ‘Novo Mundo’ e hoje sustenta uma sociedade complexa, que frequentemente se disfarça de algo simplório. Batista e Ela representam esses arquétipos com precisão, e não por acaso essa mesma base jagunça alimenta a maior produção de proteína animal da história. Não é coincidência que a série Yellowstone tenha feito tanto sucesso nos últimos anos e mencione, em um de seus episódios, que as fazendas de gado americanas estão perdendo poder para as brasileiras. Jagunços, bandeirantes e vaqueiros do Nordeste compõem o alicerce da direita nacional e americana, que no Brasil, de maneira cabotina (como mostra a peça), sustenta governos de diferentes espectros ideológicos. 

Se o Meio-Oeste americano elegeu Trump, essa magma jagunça brasileira é uma das principais bases de sustentação tanto da direita quanto da esquerda. A peça é brilhante ao criar um mix de referências: cinema americano, novelas da Globo, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe, de Glauber Rocha. Todos esses elementos são atravessados por uma lógica patriarcal e machista, que se mantém ao longo das décadas. As projeções e a estrutura da peça, que alterna momentos encenados com imagens externas, mostram de forma clara essa construção. 

É relevante destacar que a exaltação de uma estética bruta e da brutalidade como símbolo de força e autoridade tem sido instrumentalizada por setores políticos alinhados a ideologias conservadoras e ao patriarcado. Essa representação, encarnada em figuras como Jair Bolsonaro e Ronald Trump, é estrategicamente utilizada para ressoar com determinados grupos sociais, especialmente em contextos de vulnerabilidade socioeconômica, com o objetivo de naturalizar e legitimar práticas e discursos que reforçam hierarquias de poder e opressão. Isto é um elemento forte na dramaturgia. 

E então entra a questão do feminino. Uma vez, vi um ipê-roxo coberto de pequenas flores em um canteiro de uma grande avenida de São Paulo. Eram tantas que chamavam a atenção, mas também eram minúsculas. Fui pesquisar e descobri que aquilo era um esforço de sobrevivência: em um ambiente sufocante e insalubre, o ipê tentava ao máximo gerar flores, tornando-as menores, mas em maior quantidade, como um grito de desespero para continuar vivo. Assim é o feminino na peça: para existir, se veste de fúcsia, metamorfoseando-se para resistir a um magma sufocante. No mundo dos jagunços, o feminino precisa se destacar para ser notado, e um vestido fúcsia é um ato de atenção, um grito visual. No entanto, para não ser apenas decorativo, o feminino adquire muito da rudeza jagunça. A dramaturgia, verborrágica e cortante, característica do Tablado, expõe essa contradição: o feminino adornado, mas sempre à margem, se moldando para sobreviver dentro dessa estrutura brutal. 

O elenco é extraordinário, e é preciso destacar todos os atores. No entanto, André Capuano e Maria Tendllau merecem menção especial. Suas interpretações de Batista e Ela capturam exatamente a essência de seus personagens, resultado não apenas de suas performances individuais, mas do processo coletivo de construção. São excelentes atores, pertencentes à melhor estirpe do teatro de grupo paulista. Magma Jagunço é um espetáculo de duas horas que sintetiza um imaginário brutal, familiar e, ao mesmo tempo, perturbador. Uma peça que nos obriga a estranhar aquilo que, há muito tempo, nos foi vendido como normal. 

0 comentários

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *