Fragmentos da Cidade: A Avenida Paulista em Cena
Fragmentos da Cidade: A Avenida Paulista em Cena
por Márcio Boaro
Nasci e fui criado em São Paulo. Minha vida sempre orbitou
pela Avenida Paulista, esse centro nervoso da cidade, onde se cruzam o
cotidiano apressado, o trabalho exaustivo, os resquícios culturais e as
manifestações políticas. Foi por isso que fiquei especialmente curioso ao saber
da montagem de Avenida Paulista, dirigida por Felipe Hirsch, com
codireção de Juuar. A curiosidade se intensificou pelo fato de eu não ter
assistido a Avenida Dropsie, mas ter ouvido muitos comentários positivos
sobre a obra. O tempo passou, a curiosidade permaneceu, e assim que soube da
nova montagem, fui ao teatro ainda no segundo dia da temporada.
Ao me acomodar na plateia, um susto: um aviso de que o
espetáculo teria 180 minutos, sem intervalo. Ainda assim, estava disposto a me
entregar à experiência. O elenco me deixou particularmente animado, reunindo
atores que admiro, como Georgette Fadel, Roberta Estrela D’Alva e Marat
Descartes, entre outros.
O cenário é uma recriação impressionante de três pavimentos
do Conjunto Nacional, um símbolo da Avenida Paulista e um excelente ponto de
partida para a dramaturgia. O jogo entre realidade e representação é
intensificado pelas transformações na iluminação, que ora deixam as paredes
externas transparentes, ora as tornam opacas, sugerindo diferentes dimensões e
atravessamentos temporais. A cidade pulsa ao fundo, em projeções que dão a
sensação de estarmos vendo São Paulo do outro lado do prédio, numa ilusão cênica
que amplia a sensação de imersão.
O espetáculo conta com seis músicos espalhados pelo prédio e
doze atores que assumem uma multiplicidade de personagens. A dramaturgia é
fragmentada, claramente influenciada pelo teatro pós-dramático. Isso não é um
demérito, muito pelo contrário: o que se apresenta é um exemplo sofisticado e
bem-acabado desse tipo de construção dramatúrgica. As cenas transitam entre
passado, presente e futuro, com um ritmo que se adapta à natureza de cada
sequência. O efeito é potente, sustentado por uma direção rigorosa e por
atuações de altíssimo nível.
O diretor, no Teatro do Sesi-SP:
cenário recria o Conjunto Nacional (Roberto Setton/Veja SP)
A presença da música é também um dos pontos altos do
espetáculo. São muitas e muitas músicas, todas inéditas. As canções, que
desconhecia previamente, revelaram-se surpreendentemente envolventes,
contribuindo para a atmosfera multifacetada da peça. O cruzamento de
linguagens, que inclui teatro, cinema, performances musicais e projeções
visuais, reforça o caráter caleidoscópico da obra.
Dramaturgicamente, Avenida Paulista me fez recordar
três referências fundamentais do teatro político da primeira metade do século
XX: Cenas de Rua, de Bertolt Brecht, e duas peças de Elmer Rice, Street
Scene e The Subway. A primeira é um texto brechtiano que aborda o
espaço urbano como um palco de conflitos e microdramas sociais. Street Scene,
por sua vez, é ambientada em um prédio de Nova York dos anos 1920 e revela, ao
longo de 24 horas, a vida de seus habitantes, atravessada por tensões sociais e
dramas pessoais. Já The Subway se passa no metrô da cidade e explora a
interação entre passageiros anônimos, trazendo à tona a complexidade das
relações urbanas. Em Avenida Paulista, vê-se um pouco dessa tradição,
ainda que sob uma forma contemporânea e fragmentada.
Cenas dos ensaios (Helena Wolfenson/Divulgação)
Quando ficamos variando pequenos vídeos nas redes sociais,
não retemos quase nenhum daqueles fragmentos – é uma anestesia. Ontem não:
fragmentos que são unidos pela geografia ficam retidos na memória pela
qualidade e por ser teatro, por estarmos presentes naquelas micro-histórias. No
teatro, por ser uma arte presencial e coletiva, esses fragmentos ganham um
significado mais profundo do que no consumo digital, pois a experiência
compartilhada e a presença física amplificam a imersão e a reflexão. A própria
fragmentação e multiplicidade de temas fazem com que tenhamos o desejado
distanciamento crítico, mas, ao mesmo tempo, um olhar afetuoso e próximo. A
“fragência” da Paulista, seu ritmo e suas contradições estão bem
capturados no palco. A cidade é retratada como um espaço onde o real e o
surreal se confundem, onde tempos históricos se entrelaçam, onde personagens
transitam entre a existência e a alucinação. A intensidade do espetáculo faz
com que as três horas passem sem que se perceba. Não é um espetáculo fácil, mas
é um espetáculo essencial.
Os atores são crias do teatro paulistano, e sua forma de interpretar reflete o que há de melhor nessa tradição teatral. Há uma identidade muito clara na maneira como ocupam o palco, no ritmo da fala, na fisicalidade e na construção dos personagens. Essa característica se sobressai e reforça a autenticidade da peça.
Não destacarei atuações individuais, pois seria injusto
diante da força do conjunto. É uma obra que se sustenta pelo coletivo, pela
inteligência dramatúrgica e pela potência de sua encenação. Recomendo
fortemente.