Adriana Monteiro,  Boaro,  Furacão

Furacão: A Voz Ancestral que Enxerga Além da Tempestade

 Furacão: A Voz Ancestral que Enxerga Além da Tempestade

por Márcio Boaro

A Cia Amok apresenta em Furacão um espetáculo de rara sensibilidade, no qual a força de uma mulher negra, Joséphine Linc Steelson, ressoa como um testemunho de um século de lutas e desilusões. Interpretada com beleza, leveza e potência por Sirlea e Thalyssiane Aleixo, Joséphine é uma personagem que não apenas atravessa o tempo, mas o compreende em sua profundidade, reconhecendo que as transformações sociais ocorrem, mas nem sempre com a velocidade ou a justiça esperadas.

Baseado no texto do francês Laurent Gaudé, um autor de refinada sensibilidade, Furacão resgata a voz de quem esteve sempre à margem, mas que, por essa posição, desenvolveu um olhar privilegiado sobre a sociedade. Joséphine é uma mulher negra, pobre e periférica, que viveu quase um século na Louisiana e testemunhou mudanças – mas não justiça. A segregação racial e a desigualdade social permanecem estruturais, mesmo quando mascaradas por avanços pontuais. O furacão Katrina, então, para ela, não é uma tragédia isolada, mas um fenômeno natural que reordena essa estrutura, lembrando que, diante das forças da natureza, qualquer hierarquia social é frágil. Ela chama os furacões de “cadelas” que têm uma função: expor a ilusão de estabilidade e desmascarar a precariedade das promessas de inclusão.

Em um dos momentos Joséphine narra o seu costume de pegar um ônibus da periferia, descer cinco pontos depois e tomar outro que circula pelos bairros mais privilegiados. Esse gesto cotidiano sintetiza sua percepção do mundo: algo mudou, sim, mas ainda é pouco. Os negros continuam apartados, e os pobres seguem distantes da estrutura de poder. Esse olhar, ao mesmo tempo melancólico e assertivo, confere a Joséphine uma grandeza trágica. Ela não espera ver a justiça plena, mas sabe que sua percepção tem razão histórica – ainda que seja uma razão cujo tempo de concretização permaneça incerto.

O texto de Laurent Gaudé acerta ao trabalhar com repetições que, longe de tornarem a narrativa previsível, conferem-lhe um caráter rítmico, quase ritualístico. O espetáculo captura com precisão essa cadência, reforçada pela direção cuidadosa da Cia Amok e pela trilha sonora impecável, que constrói a ambientação de forma envolvente. Os músicos, em cena, participam ativamente da construção desse universo, criando uma atmosfera que amplia o impacto da narrativa.

Assim, Furacão é um encontro entre teatro político e prazer estético, um espetáculo que homenageia a resistência feminina ao mesmo tempo que sublinha a força da ancestralidade. Joséphine não é apenas uma personagem; ela é um símbolo de todos aqueles que, mesmo à margem, enxergam o fluxo da história com uma clareza que o poder central muitas vezes se recusa a reconhecer. Com sensibilidade e potência, a peça nos lembra que a tempestade pode destruir casas e cidades, mas também pode ser um chamado para reavaliar o que realmente sustenta nossas sociedades.

Ficha técnica

Texto: Laurent Gaudé

Direção e adaptação: Ana Teixeira e Stephane Brodt

Elenco: Sirlea Aleixo, Taty Aleixo, Rudá Brauns e Anderson Ribeiro

Direção musical: Stephane Brodt

Criação e produção musical: Rudá Brauns e Anderson Ribeiro

Cenário e figurino: Ana Teixeira e Stephane Brodt

Iluminação: Renato Machado

Fotografia: Sabrina Paz, Renato Mangolin e Dila Puccini

Operador de luz: Maurício Fuziyama

Cenotécnica: Beto de Almeida

Técnico de som: Thiago Sampaio

Designer gráfico: Alex Takahashi

Assessoria de imprensa: Adriana Monteiro – Ofício das Letras

Direção de produção: Jorge Moreira

Assistente de Produção: Elmar Bradley

Produção São Paulo: ORAPRONOBIS Produções Culturais

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