Resenha: “Último Ato de uma Mulher de Teatro”
Resenha: ” Último Ato de uma Mulher de Teatro ”
Por
Márcio Boaro
A morte é um dos temas mais recorrentes da dramaturgia, mas raras vezes é tratada com tanta leveza, humor e agulho quanto em “Jandira – Em Busca do Bonde Perdido”. Última obra escrita por Jandira Martini, a montagem não se limita a um relato sobre a finitude, mas se expande para celebrar a vida, o teatro e o próprio ofício da atriz e dramaturga. Sob a direção de Marcos Caruso, parceiro artístico de Jandira por quatro décadas, e interpretada com exatidão por Isabel Teixeira, o espetáculo se constrói como um jogo de memórias e reflexões, onde a agilidade cênica e a fragmentação temporal garantem um fluxo narrativo envolvente e dinâmico.
O Testamento de uma Mulher de Teatro
O termo ‘Homem de Teatro’ sempre foi um elogio reservado aos grandes mestres da cena, àqueles que dominavam todos os aspectos do ofício. Mas nunca vi a expressão ‘Mulher de Teatro’ ser usada com o mesmo peso e reconhecimento. No caso de Jandira Martini, porém, essa definição lhe cabe perfeitamente. Sua trajetória como autora e atriz evidencia um domínio completo da arte teatral, e seu legado merece esse reconhecimento..
Jandira Martini foi uma autora premiada e uma atriz com absoluto domínio do timing cênico, qualidades que se refletem em sua dramaturgia. Seu roteiro, longe de ser um lamento sobre a doença, é carregado de humor e inteligência, revelando a mesma destreza que marcou sua trajetória artística. Em vez de transformar o câncer em um drama absoluto, Jandira conduz o público por um percurso que entrelaça sua experiência pessoal com o amor pelo teatro, suas superstições, ironias e alegrias.
A montagem abandona a linearidade e aposta em uma estrutura que permite um mosaico de tempos, situações e digressões, garantindo um ritmo ágil e pulsante. Com sensibilidade e conhecimento profundo da autora, Marcos Caruso constrói uma encenação que honra esse dinamismo, extraindo da escrita sua fluidez natural.
A Construção Cênica: Simplicidade e Precisão
O espetáculo acontece no Tucarena, com o público disposto em quatro lados, reforçando a sensação de proximidade e imersão. Essa escolha valoriza a interpretação de Isabel Teixeira, que domina o espaço com energia e acuidade, conduzindo o olhar do espectador sem perder o ritmo.
A cenografia é mínima, composta apenas por uma cadeira de praia – objeto que a atriz movimenta durante a peça, carregando um duplo simbolismo: a praticidade da cena e a transitoriedade da existência. Como na areia, onde a cadeira é facilmente deslocada, a atriz a transporta para marcar mudanças de foco, reforçando a impermanência dos momentos.
O figurino, um traje bege de tecido leve, reflete tanto a praticidade de Jandira Martini quanto a liberdade necessária para a performance fluir. Sem trocas de roupa ou alterações cenográficas, a encenação se sustenta na força da palavra e na presença magnética de Isabel Teixeira.
A iluminação de Beto Bruel, aliada à direção cuidadosa de Caruso, reforça as mudanças de tom e as variações temporais da narrativa. O monólogo, mantém todas as bolas no ar, equilibra com maestria a experiência pessoal da autora, a paixão pelo teatro e as reflexões existenciais, sem nunca se tornar excessivamente íntimo ou restrito à biografia de Jandira.
Entre o Teatro e a Vida: Um Diálogo Contínuo
Um dos momentos que melhor exemplifica a abordagem inteligente da obra é a discussão sobre a superstição da cor verde no teatro. A narrativa menciona a crença de que a cor traz azar nos palcos, associada à morte de Molière, mas a própria Jandira Martini rejeitava tais crendices. Essa postura desmistificadora se estende à relação da personagem-narradora com a literatura, que surge como refúgio para lidar com sua condição. Ao longo da peça, são evocadas as palavras de Molière, Machado de Assis, Oscar Wilde e Shakespeare – autores que, em diferentes épocas, refletiram sobre a efemeridade da vida e a imortalidade da arte. A intertextualidade amplia o escopo da narrativa, ligando a trajetória de Jandira a um diálogo maior com a tradição teatral.
Isabel Teixeira assume essa energia com uma performance de raro domínio técnico. Sua entrega ao texto é total, sem excessos dramáticos, mas com controle absoluto do ritmo e do espaço. Ela se move com liberdade, faz pausas nos momentos certos, e sua interpretação nunca resvala para o sentimentalismo. A atriz compreende a essência do **espetáculo**: um fluxo de consciência que transita entre o humor, a memória e a teatralidade.
Memória e Permanência: O Teatro Como Espaço de Vida
Ao contrário de um relato melancólico sobre os últimos dias de uma artista, *Jandira – Em Busca do Bonde Perdido* é uma montagem sobre a continuidade. Mesmo partindo de uma experiência pessoal, a dramaturgia se abre para algo maior, tornando-se um tributo ao próprio ofício teatral.
A presença de Jandira Martini na obra não é apenas simbólica: ela está em cada palavra, em cada pausa e em cada escolha narrativa. A encenação, a direção e a interpretação convergem para uma celebração da arte como resistência – contra o esquecimento, o medo da morte e qualquer tentativa de reduzir o teatro a uma despedida. Aqui, ele é puro movimento, pura vitalidade.
Com um roteiro de uma autora que dominava como poucos o timing cênico, uma direção de quem a conhecia profundamente e uma atriz no auge de sua expressividade, *Jandira – Em Busca do Bonde Perdido* não é um adeus, mas um convite para continuar a viagem.
Ficha Técnica
Texto: Jandira Martini
Direção: Marcos Caruso
Atriz: Isabel Teixeira
Trilha Sonora e Assistência de Direção: Aline Meyer
Iluminação: Beto Bruel
Figurino: Fábio Namatame
Cenário: André Cortez
Produção: Mesa2 Produções
Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli
Serviço
Espetáculo: Jandira – Em Busca do Bonde Perdido
Local: Tucarena (Rua Monte Alegre, 1024 – Perdizes, São Paulo – SP)
Horários:
Sextas-feiras às 21h
Sábados às 19h
Domingos às 17h
Ingressos: Disponíveis no Sympla