Teatro

Ópera Febril: A História do Trabalho e Seus Ecos no Presente

 Ópera Febril: A História do Trabalho e Seus Ecos no Presente

Desde o título, Ópera Febril sugere um espetáculo de grande fôlego, onde “ópera” remete a “obra” e “fabril” nos conduz diretamente ao universo do trabalho. A peça, encenada pela Cia do Trailer – Teatro em Movimento, tem a direção de Marcelo Soler e André Ravasco, que também divide o palco com Andrei Gonçalves, Caren Ruaro, Laura Ramalho e Rafael Braga.

A montagem nos transporta para dois momentos cruciais da exploração do trabalho no Brasil. Como é característico do teatro documentário, os atores, em um primeiro momento, apresentam seus relatos de forma distanciada, sem personalismo, antes de mergulhar em um dos casos mais simbólicos da industrialização brasileira: a história dos Cobertores Parahyba. Situada em São José dos Campos, essa fábrica tornou-se emblemática ao longo do século XX, e a peça acerta ao reconstruí-la a partir dos relatos e documentos sob a perspectiva dos trabalhadores.

Ao revelar as condições de trabalho entre as décadas de 1930 e 1990, o espetáculo traça um panorama da história recente do Brasil. O público, especialmente quem vem da classe trabalhadora, inevitavelmente se vê refletido nesses relatos. Mas esse reconhecimento não se dá por meio de uma exposição melodramática. Pelo contrário, há um cuidado em manter uma abordagem limpa, distanciada, que permite que a crítica social ressoe sem apelar para o sentimentalismo.

O ambiente opressor da fábrica é decomposto aos olhos da plateia, e o palco se torna o coração da indústria – um espaço onde a produtividade se sobrepõe ao bem-estar humano. A encenação é minimalista: todos os atores tocam algum instrumento, os adereços e figurinos remetem ao universo do trabalho e não há hierarquia entre personagens e intérpretes, reforçando a ideia coletiva do espetáculo. O jogo cênico cresce de maneira progressiva, ampliando as questões abordadas e aproximando-as da contemporaneidade. Esse processo dramatúrgico lembra A Balada do Fantoche Lusitano, de Peter Weiss, que expõe a exploração colonial portuguesa na África e seu caráter anacrônico e covarde. Da mesma forma, Ópera Febril evidencia que o modelo de exploração industrial não pertence apenas ao passado, mas continua se transformando.

A peça não se limita a um olhar histórico. Quando atinge os anos 1990, a dramaturgia sugere que estamos não apenas no ápice do neoliberalismo, mas em uma transição para algo ainda mais preocupante: o neofeudalismo. O espetáculo aponta como, no discurso, o neoliberalismo prometia um mercado livre e competitivo, mas, na prática, consolidou monopólios e oligopólios que controlam setores inteiros da economia. Ópera Febril nos faz enxergar que a transição para o neofeudalismo aprofunda essa lógica: hoje, a propriedade dá lugar ao acesso condicional, e a dependência de plataformas digitais transforma o indivíduo em um novo servo feudal, submetido a senhores como iFood, Uber, Meta e Google. Nesse modelo, a desigualdade se intensifica, a elite detém o controle dos dados e da tecnologia, e os direitos trabalhistas tornam-se cada vez mais frágeis.

Ao final, o espetáculo não apenas revisita a história do trabalho, mas questiona seu presente e futuro. Sem didatismo, alerta para os riscos da precarização, da intensificação da exploração e da perda de direitos. O teatro, aqui, assume sua função crítica, provocando uma reflexão sobre os desafios contemporâneos do trabalho.

Além da densidade temática, Ópera Febril se destaca por sua linguagem poética e por uma estética que mistura música, dança e artes visuais, criando uma experiência sensorial que intensifica o impacto da narrativa. É um espetáculo necessário, que merece ser visto e debatido. Mais do que uma peça sobre o passado do trabalho, é um chamado para pensarmos sobre o presente e o futuro de nossas relações laborais.

Ao sair do teatro, o espectador leva consigo não apenas uma reflexão sobre a precarização do trabalho, mas também a sensação de que essa história continua sendo escrita. Ópera Febril não é apenas uma peça sobre o passado ou o presente; é um convite para pensar o futuro e nossas possibilidades de resistência.

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