Resenha: “Nora e a Porta” – O Grito que Ainda Ecoa
Resenha: “Nora e a Porta” – O Grito que Ainda Ecoa
A força de Casa de Bonecas não vem apenas de sua estrutura dramatúrgica, mas da denúncia que carrega – e que, infelizmente, segue necessária. Em Nora e a Porta, a montagem que está no Sesc revisita a peça de Henrik Ibsen a partir de uma perspectiva contemporânea, ressaltando o incômodo que persiste: se a forma teatral evoluiu nos últimos 150 anos, a opressão patriarcal contra as mulheres continua como uma realidade estrutural. Neste tempo, o problema de origem permanece: o patriarcado é a base do capitalismo e da sociedade burguesa, ambos se beneficiam de estruturas de poder desiguais.
O drama burguês é uma forma que foi criada para valorizar a sociedade burguesa e sua lógica de organização. No final do século XIX, essa estrutura começou a ser questionada, e é nesse contexto que Ibsen escreve Casa de Bonecas. O que torna sua peça fundamental é o fato de que ela denuncia o sistema a partir de dentro, subvertendo a forma que lhe deu origem. No entanto, o que Szondi já apontava em Teoria do Drama Moderno (1956) se mantém até hoje: a forma burguesa resistiu e continuou a ser valorizada ao longo do século XX, apesar de sua crise. Nora e a Porta dialoga diretamente com essa contradição ao atualizar o questionamento da peça original sem romper completamente com sua estrutura dramática.
Se o grito de Nora ainda ecoa, é porque a forma se mantém. Os vícios da sociedade burguesa não foram vencidos, e a estrutura dramatúrgica que surgiu para exaltá-los ainda persiste, mesmo quando tenta ser contestada. No século XX, apesar da crise do drama burguês, ele não foi superado. A indústria cultural, com sua enorme capacidade de assimilação e reaproveitamento, absorveu essas críticas e as reconfigurou dentro de sua lógica. Assim, mesmo quando se apresenta como crítica, a forma dramática ainda reflete a estrutura social que a originou.
O nome da peça e sua encenação enfatizam um dos momentos mais marcantes da obra de Ibsen: o instante em que Nora decide atravessar a porta. Romper com o lar, com as expectativas que recaem sobre ela, e abandonar o marido simboliza um ato de libertação e ruptura com a sociedade que a aprisiona. A porta é mais do que um elemento cênico, é a materialização da escolha de Nora. Ao nomear a peça Nora e a Porta, a montagem não apenas reforça essa imagem icônica, mas também convida o público a refletir sobre o que significa, em pleno século XXI, atravessar essa porta. A sociedade evoluiu o suficiente para que essa travessia seja completa, ou as mulheres continuam presas às mesmas estruturas que Nora tentava romper?
Essa contemporaneidade se acentua pela inclusão de um trecho de Calibã e a Bruxa, de Silvia Federici, na encenação. A obra analisa a caça às bruxas como um elemento fundamental na construção do capitalismo e do controle sobre os corpos femininos, relacionando esse processo à exploração do trabalho e à consolidação da sociedade burguesa. O livro é mostrado em cena, enfatizando essa conexão e ampliando o alcance da crítica, conectando a trajetória de Nora a um contexto mais amplo de dominação e resistência histórica.
A atriz Rita Pisano, que interpreta Nora, abraça esse conceito e o traz para a cena com potência. Sua interpretação questiona ativamente essa comparação: se a fábrica é o espaço da materialização da força do homem no mundo, o corpo da mulher seria sua prisão? Nora se debate com essa ideia, deixando claro que, dentro da sociedade burguesa, a mulher não apenas sofre opressão, mas é forjada para aceitá-la como um destino natural. A encenação reforça essa leitura ao explorar elementos de distanciamento, rompendo a linearidade emocional e expondo a teatralidade da opressão.
Essa escolha de linguagem enfatiza um outro ponto crucial: o American Way of Life, propagandeado massivamente ao longo dos séculos XX e XXI, naturalizou os valores burgueses e patriarcais como modelo de vida ideal. Milhares de filmes, novelas e peças reforçaram esse sistema, fazendo parecer que a submissão da mulher ao núcleo familiar e ao sucesso econômico do marido seria algo espontâneo, e não um projeto cultural deliberado. O esforço de naturalização foi tamanho que, mesmo hoje, críticas como as de Federici continuam dolorosamente atuais.
Por transportar um problema claramente burguês para São Paulo do século XXI, pode-se ter a sensação de estar assistindo a uma discussão restrita a um grupo social privilegiado. Mas a peça acerta ao questionar essa perspectiva. A única personagem negra faz um comentário que evidencia essa preocupação da montagem, demonstrando a consciência da direção sobre o alcance e as limitações do debate.
A dramaturgia e a direção possuem um domínio claro sobre o que querem abordar. O foco narrativo se altera diversas vezes, conferindo dinamismo à encenação e trazendo uma forma contemporânea à peça.
Adriana Mendonça interpreta a amiga de Nora, que, por sua origem e gênero, não consegue se desenvolver profissionalmente como gostaria. Carlos de Niggro dá vida ao amigo próximo do casal, que oferece certa sustentação a Nora, mas, apesar de vê-la mais como uma pessoa, não a trata como sua igual. André Garolli, no papel do marido, se encaixa confortavelmente na posição de homem branco de classe média, cujos problemas não estão ligados à macroestrutura social, desempenhando seu papel com eficácia. Heitor Goldflus transita com maestria entre as variações de sua personagem e, quando assume o papel de ator em cena, demonstra grande habilidade.
Rita Pisano faz uma excelente Nora paulistana moderna, trazendo toda a complexidade da personagem para o momento atual. Com as reflexões introduzidas pela autora, ela mostra que a mudança não virá daqueles que estão confortáveis. A cena em que os homens a conduzem de um para o outro, inicialmente com cuidado e depois com brutalidade, mas sempre com conforto para eles, ilustra cenicamente muito do que o texto apresenta.
Ao final de Nora e a Porta, o desconforto não vem apenas do destino da protagonista, mas da constatação de que sua rebeldia segue sendo necessária. Se no século XIX Casa de Bonecas era um ataque direto à estrutura patriarcal, em 2025 sua denúncia se torna ainda mais urgente – pois, se é angustiante ver uma mulher aprisionada no passado, é ainda mais doloroso perceber que as mesmas amarras persistem no presente.
Ficha Técnica
- Dramaturgia: Marina Corazza
- Direção: Sandra Corveloni e Maristela Chelala
- Elenco: Adriana Mendonça, Anderson Negreiro, André Garolli, Carlos de Niggro, Heitor Goldflus e Rita Pisano
- Coordenação de Produção: Mosaico Produções
- Produção Executiva: Cícero de Andrade
- Assessoria de Imprensa: Rafael Ferro e Pedro Madeira
- Fotografia: Angélica Prieto
Serviço
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Classificação indicativa: 14 anos
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Duração: 90 minutos
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Temporada: De 25 de fevereiro a 21 de março de 2025
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Horários: Terça a sexta: 20h30*
(*Terça, 04/03, às 17h30) -
Sessões com tradução em Libras: Dias 27/2, 7, 11 e 19/03
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Local: Sesc Pompeia – Espaço Cênico – R. Clélia, 93 – Pompeia, São Paulo, SP
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Telefone: (11) 3871-7700
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Ingressos: R$ 60 (inteira) / R$ 30 (meia) / R$ 18 (credencial plena Sesc SP)

