O Jardim das Cerejeiras: Entre o Cuidado Estético e a Crítica Social
O Jardim das Cerejeiras: Entre o Cuidado Estético e a Crítica Social
Por Márcio Boaro
No espaço onde Antunes Filho nos brindou por décadas com criações memoráveis, o Teatro Anchieta, no SESC Consolação, agora floresce sob as cerejeiras de Tchekhov, conduzidas pela visão sensível de Ruy Cortez e a Cia da Memória. A montagem de O Jardim das Cerejeiras não apenas encanta pela estética, mas provoca reflexões profundas sobre a decadência da aristocracia, o avanço da burguesia e a persistente invisibilidade da classe trabalhadora.
Se há uma palavra que sintetize o espírito dessa montagem, ela é “cuidado”. Cada elemento cênico parece calculado para transportar o espectador a uma imersão sensorial e emocional. A cenografia, com balões brancos flutuando sobre a plateia e uma rampa branca que avança pelo centro do teatro, cria um jardim em que o público literalmente caminha entre as estações e as camadas narrativas.
Essa escolha arquitetônica rompe a rigidez do palco italiano, promovendo uma conexão viva entre os atores e o público, sem que a magia da teatralidade se perca. Tudo ocorre nesta alameda: o público está imerso nos jardins não apenas visualmente, mas sensorialmente, por conta da ambientação de luzes e balões que simulam flores brancas suspensas.
Ruy Cortez e a Cia da Memória, conhecidos por montagens belíssimas, entre elas a montagem de Brecht A Alma Boa de Setsuan, dirigida há muitos anos, mais uma vez provam sua capacidade de equilibrar estética e crítica. Porém, o que torna esta montagem especial é a sensibilidade com que Cortez incorpora o método realista de Stanislavsky. Essa união entre a crítica social brechtiana e a força emocional do realismo psicológico de Stanislavsky cria um espetáculo que toca profundamente sem jamais abandonar sua postura crítica.
Uma Montagem de Imersão Sensorial
Desde os primeiros instantes, O Jardim das Cerejeiras, transporta o espectador para um universo de beleza sensorial e narrativa envolvente. O Teatro Anchieta, no SESC Consolação, é transformado em um jardim vivo, onde balões brancos flutuam sobre o público, imitando flores de cerejeira em pleno florescimento. A cenografia do teatro José de Anchieta é mais do que um elemento visual: é uma experiência que dissolve os limites entre cena e plateia.
O centro do palco é atravessado por uma passarela branca que avança em direção à plateia, uma alameda simbólica que convida o público a caminhar junto com os personagens pelas estações da vida. Essa escolha cenográfica cria uma dinâmica espacial única, onde a ação principal ocorre ao longo dessa alameda, mas a ambientação transforma todo o espaço em parte do espetáculo. O público não apenas assiste à peça; ele se encontra literalmente dentro do jardim das cerejeiras.
A iluminação reforça esse discurso ao criar uma atmosfera que ora sugere sonho, ora denuncia o vazio da ilusão aristocrática. Esse contraste entre uma beleza intangível e as tensões sociais subjacentes demonstra como a estética é utilizada como uma ferramenta política, desafiando o público a ir além da contemplação e adotar um olhar crítico sobre os temas apresentados.
Tchekhov Sob a Lente do Século XXI
A montagem reafirma a universalidade de Anton Tchekhov ao traduzir as tensões sociais de uma Rússia em transformação para questões ainda pulsantes na contemporaneidade. Ambientada na virada do século XX, a obra explora a decadência da aristocracia, o avanço da burguesia e a alienação dos trabalhadores, mas a abordagem destaca como essas dinâmicas ecoam no Brasil do século XXI.
Liubov Andreevna, interpretada por Sandra Corveloni, é uma figura central que simboliza o declínio da aristocracia. Sua relação ambivalente com o passado, marcada pela nostalgia e pela recusa em enfrentar as mudanças que se avizinham, a torna uma personagem profundamente humana, mas igualmente trágica. Seu apego ao jardim das cerejeiras não é apenas uma conexão emocional: é um refúgio da realidade, uma tentativa de preservar algo que já está condenado à extinção.
Lopakhin, vivido por Caio Juliano, cuja performance encapsula a energia e a ambição da nova burguesia. Em uma das passagens, o ator menciona que seus antepassados eram servos, mas o termo foi substituído por “escravizados”. Essa escolha, influenciada pela ascendência de Juliano, não apenas reforça o diálogo histórico com as realidades do Brasil, mas também adiciona uma camada de crítica social à peça, conectando as raízes da exploração ao presente. A intensidade de sua atuação transmite a complexidade de um personagem moldado por uma sociedade que recompensa a eficiência econômica acima da sensibilidade, não é retratado como um vilão simplista. Ele é pragmático, mas também vulnerável, uma figura moldada por uma sociedade que recompensa a eficiência econômica acima da sensibilidade. Sua decisão de transformar o jardim em lotes comerciais simboliza tanto a destruição da beleza quanto a ascensão de uma nova ordem.
Por outro lado, Carlotta Ivanovna, vivida por Ondina Clais, é um exemplo fascinante de como a aristocracia busca se entreter em meio à sua decadência. Com números de ilusionismo sutis e encantadores, a governanta oferece à família momentos de escapismo que refletem sua insistência em viver uma realidade que já não existe mais. Em um mundo sem telas e sem as múltiplas distrações contemporâneas, Carlotta se torna a personificação de uma distração artesanal, uma ilusão construída para mascarar o vazio crescente da estrutura social que a família Ranevskaia representa. A performance de Ondina é delicada e envolvente, reforçando a crítica ao apego da aristocracia a uma realidade idealizada e irreal.
Fiers, interpretado por José Rubens Siqueira e Luis Amorim, é o retrato mais pungente da alienação dos trabalhadores. Sua inconsciente lealdade à família Ranevskaia nos faz lembrar das pessoas da classe trabalhadora brasileira contemporânea que abraçam os valores da classe dominante, tornando-se novos Fiers. Em um país marcado por desigualdades estruturais, não faltam exemplos de trabalhadores que, mesmo explorados, reproduzem a ideologia de seus exploradores. Sempre presente, mas invisível, ele representa aqueles que sustentam as estruturas sociais enquanto permanecem excluídos de seus benefícios. Sua fidelidade à família Ranevskaia é comovente, mas também revela as dinâmicas de exploração que perpetuam a desigualdade.
Ruy Cortez ressignifica essas figuras e suas trajetórias com uma abordagem que não apenas honra o texto original, mas também o enriquece com nuances contemporâneas. A queda da aristocracia e o surgimento da burguesia capitalista são temas que encontram paralelos diretos em um Brasil marcado por desigualdades profundas e transformações sociais.
Essa conexão é reforçada pela estética da montagem, que, ao mesmo tempo que encanta, provoca o público a refletir sobre o que é perdido e o que é ganho em nome do progresso. Tchekhov, sob a lente de Cortez, não é apenas um cronista do passado; ele se torna um crítico do presente e um profeta das tensões que persistem no futuro.
Crítica à Alienação e à Exploração
Em O Jardim das Cerejeiras, a crítica à alienação e à exploração está presente em cada camada da narrativa e nas escolhas do encenador. O texto de Tchekhov ganha uma força ainda maior ao ser transposto para um contexto que dialoga com as desigualdades estruturais do Brasil contemporâneo. A montagem revela como a alienação permeia tanto os trabalhadores quanto os aristocratas, criando um retrato multifacetado das dinâmicas de poder.
Fiers, é a figura central dessa exploração. Sua inconsciente lealdade à família Ranevskaia nos faz lembrar das pessoas da classe trabalhadora brasileira contemporânea que abraçam os valores da classe dominante, tornando-se novos Fiers. Em um país marcado por desigualdades estruturais, não faltam exemplos de trabalhadores que, mesmo explorados, reproduzem a ideologia de seus exploradores. Sempre presente, mas invisível, ele representa aqueles que sustentam as estruturas sociais enquanto permanecem excluídos de seus benefícios. Sua fidelidade à família Ranevskaia é comovente, mas também revela as dinâmicas de exploração que perpetuam a desigualdade.
A decisão de manter o figurino de Fiers inalterado, mesmo com as mudanças sazonais que transformam as roupas dos outros personagens, sublinha visualmente essa imobilidade social. Enquanto o mundo ao seu redor muda, o personagem permanece estática, presa a uma condição que não lhe oferece alternativas.
Por outro lado, Lopakhin, apresenta outra faceta da exploração. Sua ascensão como empresário burguês contrasta com sua origem humilde, mas sua trajetória não o liberta das contradições do sistema. Ele assume o papel de explorador, mas carrega consigo as marcas de um passado de exploração, o que o torna uma figura complexa e ambígua. Sua decisão de transformar o jardim em lotes comerciais não é apenas um ato pragmático, mas também um símbolo da destruição da beleza e da tradição em nome do lucro.
A direcao também explora como a aristocracia se aliena em relação à própria realidade. Liubov Andreevna, vive em um estado de negação, incapaz de lidar com as mudanças que a cercam. Seu apego ao jardim das cerejeiras é uma tentativa de preservar uma ilusão, enquanto o mundo real exige uma transformação que ela não está preparada para enfrentar.
Essas camadas de alienação e exploração são tecidas com delicadeza pela direção e pelas performances, criando uma montagem que não apenas emociona, mas também provoca reflexões profundas sobre as estruturas sociais que moldam nossa realidade.
A Estética como Reflexo da Política
Neste espeta, a estética transcende o papel de encantamento visual e se transforma em um veículo crítico que amplifica as questões sociais e políticas presentes na obra. Cada elemento visual como uma extensão das tensões narrativas, construindo uma experiência teatral que seduz e questiona ao mesmo tempo.
A integração entre a cenografia e a narrativa é notável. O jardim que se expande para englobar a plateia, com balões flutuantes e a passarela que avança sobre o público, não apenas recria um espaço físico, mas também metaforiza a fragilidade das estruturas sociais que sustentam a aristocracia. Essa delicada interação entre beleza e efemeridade convida o espectador a refletir sobre o que é preservado e o que é perdido em tempos de transformação.
Ao mesmo tempo, a escolha de cores no figurino, alternando a cada estação do ano, traduz o ciclo de mudanças inevitáveis. No entanto, a imutabilidade do figurino de Fiers destaca, com clareza visual, a estagnação social daqueles que, mesmo indispensáveis, são excluídos das dinâmicas de progresso.
A iluminação reforça esse discurso ao criar uma atmosfera que ora sugere sonho, ora denuncia o vazio da ilusão aristocrática. Esse contraste entre uma beleza intangível e as tensões sociais subjacentes demonstra como a estética é utilizada como uma ferramenta política, desafiando o público a ir além da contemplação e adotar um olhar crítico sobre os temas apresentados.
Conclusão
A montagem de O Jardim das Cerejeiras pela Cia da Memória, sob a direção de Ruy Cortez, transcende o que se espera de uma adaptação clássica ao transformar a obra de Tchekhov em um espaço de diálogo entre o passado e o presente. Cada elemento — da cenografia à interpretação dos atores — está alinhado para oferecer uma experiência sensorial, emocional e crítica que convida o espectador a refletir sobre as tensões sociais que persistem em nossa sociedade.
A crítica à alienação, à exploração e à fragilidade das estruturas sociais é habilmente entrelaçada com uma estética encantadora, que, ao invés de anestesiar, amplifica a urgência das questões abordadas. A escolha de elenco é irretocável, Walter Breda entrega um Semper Pischik em uma performance marcante e carismática, Mario Borges entrega um Gayev como uma personagem excêntrica e um tanto infantil hilária reflexo claro da pessoa que não reconhece a realidade, assim eles acrescentam camadas de profundidade e autenticidade às relações humanas representadas no palco. Os outros integrantes não podem deixar de serem citados, Beatriz Napoleão, João Vasco, Gabrielle Lopes, Caio Juliano, Ana Hartmann, Daniel Warren, Conrado Costa, Clodd Dias formam um elenco equilibrado do elenco ampliam essa complexidade com atuações igualmente precisas, criando um mosaico coeso de personagens e conflitos.
Ruy e sua equipe demonstram que a arte teatral pode ser ao mesmo tempo bela e desafiadora, evocando emoções e, ao mesmo tempo, engajando intelectualmente. O Jardim das Cerejeiras não é apenas uma peça sobre o passado: é um espelho que reflete as desigualdades, as transformações e as contradições de nosso tempo, tornando-se uma obra indispensável para o público contemporâneo.
Ao final, o espectador não sai apenas com a memória de um espetáculo visualmente deslumbrante, mas também com questões que ressoam além do teatro, reafirmando a relevância do palco como espaço de fabulação, crítica e transformação.
Ficha técnica
Texto: Anton Tchekhov
Tradução: Rubens Figueiredo
Direção, concepção e encenação: Ruy Cortez
Elenco: Sandra Corveloni, Mario Borges, Walter Breda, Ondina Clais, José Rubens Siqueira, Beatriz Napoleão, João Vasco, Gabrielle Lopes, Caio Juliano, Ana Hartmann, Daniel Warren, Conrado Costa, Clodd Dias, Felipe Samorano (participação afetiva).
Direção de atores: Miriam Rinaldi
Desenho da coreografia: Ondina Clais
Direção de produção: Emerson Mostacco
Cenografia: André Cortez
Figurino: Fabio Namatame
Iluminação: Wagner Antônio
Composição original: Thomas Rohrer
Sonoplastia e design de som: Aline Meyer
Assistente de direção: Felipe Samorano
Assistente de produção: Paulo Del Castro
Assistente de cenografia: Camila Refinetti
Assistente e operador de luz: Denis Kageyama
Assistente de luz: Dimitri Luppi
Assistente e produtor de figurino: Adilson de Faria e Carol Zillig
Camareira: Andréa Lima
Modelagem: Juliano Lopes
Costura: Fernando Reinert e Lenilda Moura
Alfaiate: Agenor Domingues
Operador de som e microfones: Anderson Franco
Contrarregragem: Eric Estevan e Wesley Jeferson
Cenotecnia: Wanderley Cenografia
Preparação de mágicas: Ricardo Malerbi
Assessoria de imprensa: Adriana Monteiro
Mídias sociais: Lead Performance
Design gráfico: Laerte Késsimos
Fotos: Ale Catan e Klaus Mitteldorf
Registro videográfico: Jagun Filmes e Laerte Késsimos
Making Off: Marcelo Bacchin
Ilustrações: Ulysses Bôscolo
Flores em Papel: Mira Haar
Edição dos textos do programa: Davi Giordano
Produção: Companhia da Memória e Mostacco Produções