Teatro

Resenha: Um Grito Parado no Ar – Teatro do Osso

Resenha: Um Grito Parado no Ar – Teatro do Osso 

Por Márcio Boaro 

O Teatro do Osso, sob a direção de Rogério Tarifa, ressignifica a obra clássica Um Grito Parado no Ar, de Gianfrancesco Guarnieri, e transforma o palco em um espaço de reflexão, memória e resistência. Mais do que uma releitura, o espetáculo é um mergulho profundo nas possibilidades do metateatro e na função social do teatro em tempos de crise. 

Escrito durante a ditadura militar, o texto de Guarnieri já trazia uma proposta ousada: falar sobre os desafios do fazer teatral em um momento de censura e repressão. Cinquenta e um anos depois, a montagem do Teatro do Osso retoma essas questões com uma abordagem ampliada, conectando passado e presente de forma visceral. 

Um dos elementos mais poderosos do espetáculo é o diálogo estabelecido entre a encenação original de 1973 e a versão atual. Projeções de imagens e vídeos da montagem de Guarnieri aparecem no fundo do palco, criando uma comunicação direta entre as duas épocas. Em alguns momentos, a mesma cena é apresentada simultaneamente em vídeo e no palco, como se as vozes de ontem e hoje se entrelaçassem para nos lembrar que a luta pela arte e pela liberdade é contínua. 

A montagem também amplia uma característica central do Teatro de Arena, onde Guarnieri e Augusto Boal estabeleceram inovações marcantes no uso do coro. Boal utilizava coros como participantes ativos na ação teatral, e não apenas como narradores. No Teatro de Arena, os coros frequentemente representavam a voz do povo ou de grupos oprimidos, promovendo o diálogo e a reflexão coletiva. Essa abordagem reforçava a mensagem política e social das peças, envolvendo o público de forma ativa e crítica. 

O espetáculo do Teatro do Osso dá um passo além ao transformar o coro em um conjunto de individualidades. Cada integrante tem seu momento de destaque, compartilhando histórias de vida reais que criam uma ponte emocional direta com o público. Ao reconfigurar o coro dessa maneira, o espetáculo homenageia a tradição do Teatro de Arena e, ao mesmo tempo, inova ao deslocar o foco tradicional de um protagonista para a coletividade. Isso evidencia como vozes individuais, quando reunidas, formam uma força poderosa.

foto de Maurício Bertoni

O espetáculo não teme explorar emoções, mas, neste caso específico, isso é uma qualidade positiva. Ele vai na contramão do drama burguês ao direcionar a identificação do público para os populares da peça e suas questões. Tudo é feito com muito cuidado e delicadeza, promovendo uma conexão genuína com os temas abordados. 

O teatro, como arte fugaz, muitas vezes sobrevive apenas na memória daqueles que o vivenciam. Por isso, trabalhos como este, que resgatam e ampliam a potência de obras históricas, são fundamentais. Relembrar um espetáculo que marcou a resistência à ditadura em tempos em que muitos ignoram ou relativizam suas atrocidades é um ato de coragem e compromisso. A direita desinforma, manipula e apaga; o teatro resiste, sensibiliza e nos faz lembrar quem somos. 

A direção de elenco, compartilhada por Rogério Tarifa e Luiz André Cherubim, é outro ponto alto do espetáculo. Ambos demonstram uma compreensão profunda do ofício, extraindo dos atores interpretações ricas em nuances e autenticidade. Cada detalhe minucioso do trabalho de ator é explorado, resultando em performances que são ao mesmo tempo intensas e profundamente conectadas com o público. 

A luz e o som também desempenham papéis fundamentais na narrativa. A iluminação, trabalhada com sensibilidade, destaca os momentos de maior tensão e emoção, enquanto os músicos, que executam o repertório ao vivo, ampliam a experiência sensorial do público. A direção musical de William Guedes e as composições originais de Jonathan Silva transformam o espetáculo em um verdadeiro ato musical, onde a música e a dramaturgia se fundem para contar uma história que é, ao mesmo tempo, atemporal e urgentemente contemporânea. 

A montagem também celebra os 10 anos do Teatro do Osso, uma trajetória marcada por um compromisso constante com o teatro como espaço de reflexão e transformação. O processo criativo deste espetáculo, iniciado antes da pandemia, teve seu tempo de maturação ampliado pelas circunstâncias. Esse intervalo, longe de ser um obstáculo, permitiu que cada detalhe fosse cuidadosamente lapidado, resultando em uma obra rica e profundamente impactante. 

Mais do que uma homenagem ao passado, Um Grito Parado no Ar é um convite à ação. Ao resgatar a memória do Teatro de Arena e dos artistas que enfrentaram a repressão com coragem e criatividade, o espetáculo nos lembra que o teatro não é apenas uma arte, mas também uma ferramenta política. Ele nos desafia a refletir sobre nosso papel no presente e a questionar as narrativas que nos são impostas. 

Com um elenco comprometido, a participação especial de Dulce Muniz e uma equipe criativa que entende o teatro como um espaço de conexão e resistência, o espetáculo é uma experiência arrebatadora. Ele honra o texto de Guarnieri e o expande para novos horizontes, utilizando a identificação não para reforçar o individualismo, mas para revelar o coletivo e conectar histórias de luta, arte e emoção. 

Vale conferir a programação no Teatro do Bom Retiro e mergulhar nesta homenagem à arte como resistência e à memória como motor de transformação. 

Ficha técnica
Direção: Rogério Tarifa
Dramaturgia: Jonathan Silva, Rogério Tarifa e Teatro do Osso
Direção de Atores: Rogério Tarifa e Luis André Cherubim
Texto original: “Um Grito Parado no Ar”, de Gianfrancesco Guarnieri
Elenco: Maria Loverra, Rubens Consulini, Guilherme Carrasco, Isadora Títto e Oswaldo Ribeiro Acalêo
Atriz convidada: Dulce Muniz
Coro: Thiego Torres, Ísis Gonçalves, Wilma Elena, Rommani Carvalho, Nduduzo Siba, Sofia Lemos, Dan Nonato e Marcela Reis
Direção musical e treinamento vocal: William Guedes
Composições originais: Jonathan Silva
Músicos: Gabriel Moreira, Felipe Chacon e Ju Vieira
Direção de movimento e treinamento: Marilda Alface
Direção de Arte: Rogério Tarifa
Cenário: Rogério Tarifa e Diego Dac
Figurino: Juliana Bertolini
Desenho de som: Duda Gomes
Diretor de palco: Diego Dac
Técnico de Palco: Diego Leo
Técnico de som: Duda Gomes
VJ: Lui Cavalcante
Assistente de Produção: Julia Terron
Assistente figurino: VI Silva
Produção Executiva: Carolina Henriques
Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli
Fotos: Mauricio Bertolin e Cacá Bernardes
Registro em vídeo e teaser: Carolina Romano
Designer gráfico: Fábio Vieira
Ilustração: Elifas Andreato
Realização: Teatro do Osso
Produção: Jessica Rodrigues Produções Artísticas
Direção de Produção: Jessica Rodrigues


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