Teatro

CANOVACCIO — A consciência cênica de um bufão que não se rende

Resenha publicada em “Os que lutam”
por Márcio Boaro

“Há os que lutam um dia, e são bons.
Há os que lutam muitos dias, e são muito bons.
Mas há os que lutam toda a vida, esses são os imprescindíveis.”
— Bertolt Brecht

Nosso espaço, Os que lutam, nasceu sob o signo desse verso. Ele não é apenas um título ou um gesto de reverência à tradição do teatro épico: é um compromisso. […] Falar de Canovaccio, com Clóvis Gonçalves em cena, portanto, não é apenas um gesto crítico: é um ato de reconhecimento.

Cena de Canovaccio - Clóvis em cena
Cena 1 – Clóvis Gonçalves como Falstaff. Foto: Alexandre Diniz

Entre a farsa e a lucidez: um projeto de tempo longo

“Canovaccio – Ensaio sobre Consciência e Poder” é um espetáculo que se recusa a nascer às pressas. Leva mais de vinte anos de maturação. Em sua essência, é a fusão entre o corpo-laboratório de Clóvis Gonçalves, a escrita de Alessandro Toller — aqui mais dramaturgista do que autor — e a direção de Gonzaga Pedrosa, cuja marca é o rigor do olhar: cada gesto, pausa ou deslocamento parece ter sido experimentado cem vezes antes de se fixar.

A base é Shakespeare, mas o espetáculo não se propõe a adaptar Falstaff. Ele o destila. Ele o interroga. Retira o personagem da moldura histórica e o instala no que talvez seja o espaço mais cruel da existência cênica: o depois. A taverna já não é lugar de encontro. O príncipe Hal não virá. Só resta o bufão — com seu corpo, sua memória e sua consciência.

O espaço cênico como linguagem simbólica

A cenografia do coletivo !mpulso evita qualquer ilustração. Há apenas uma cadeira ao centro de um retângulo delimitado por um cordão vermelho espesso. Um lado guarda diversas garrafas de vinho em pé. Do outro, uma garrafa deitada. É a construção de um campo simbólico: o personagem se move entre o excesso e a finitude, entre o que se levantou e o que já tombou.

Esse espaço não é neutro. Ele confina. Isola. Funciona como um cercado cerimonial, um espaço de julgamento, um altar profano. A cadeira, inicialmente ponto de contenção, transforma-se em obstáculo. Ao longo do espetáculo, ela será superada — não com heroísmo, mas com lucidez.

O figurino, composto por kilt, camisa de linho, meias e sapatos de época, opera no mesmo registro. Beto França não entrega um traje histórico, mas um signo de deslocamento. Falstaff, aqui, não é um inglês renascentista. É um corpo fora de lugar — e por isso mesmo, profundamente atual.

Detalhe do cenário com cordão vermelho e garrafas
Cenografia como campo simbólico. Foto: Alexandre Diniz

O tempo como dramaturgia: pausas, delírio e ensaio

O espetáculo não tem pressa: há pausas longas, momentos de delírio e falsos recomeços, como se o personagem tentasse ensaiar sua própria redenção e falhasse. O texto — fruto de um processo colaborativo e de investigação detalhada — apresenta uma estrutura que flerta com o canovaccio da commedia dell’arte, mas sem recorrer à improvisação como procedimento cênico. É o ensaio como método de pensamento: ensaiar aqui é tentar de novo, e também reconhecer o fracasso.

As narrações contemporâneas — estrategicamente posicionadas — criam o efeito brechtiano de distanciamento, sem quebrar a tessitura dramatúrgica. Essas vozes (que podem vir como ruídos, áudios gravados ou pequenos apartes) ancoram o bufão na atualidade: falam de governantes ridículos, de influencers bufões, de políticas públicas feitas como piada — mas com consequências irreversíveis.

A fisicalidade da escuta: o corpo como campo de fricção

Durante os primeiros minutos, Clóvis atua apenas com a cabeça. O corpo inteiro é um campo de contenção, de escuta interna. Depois, aos poucos, a fisicalidade emerge. Há um momento — quase imperceptível — em que a cadeira já não basta. O bufão precisa se levantar. O gesto é sutil, mas irrecusável: é o corpo da indignação que vence o corpo da memória.

Esse manejo do tempo físico é de uma precisão rara. Clóvis sabe o peso de cada gesto, e não o antecipa. Ele deixa que a necessidade da cena emerja organicamente, a partir da relação entre voz, respiração e espaço. O resultado é uma atuação que não ilustra emoções, mas as incorpora como resistência.

Clóvis Gonçalves levantando-se da cadeira
Quando o corpo se insurge. Foto: Alexandre Diniz

O corpo do ator como território político

Clóvis Gonçalves, na atuação, carrega o espetáculo sobre os ombros com uma entrega física e emocional admirável. Seu Falstaff não é apenas um homem: é uma máscara trincada. Ele alterna entre a exuberância corporal e a exaustão, como se cada frase fosse um último suspiro de glória. Sua voz se arrasta por registros graves, mas explode em agudos ridículos quando se imita ou se confronta.

É um corpo que ri e chora com o mesmo músculo. E essa fisicalidade é essencial: o bufão só existe enquanto corpo político. Ao exibir sua carne envelhecida, seus tiques, sua dança trôpega, Clóvis atualiza a figura do palhaço como denúncia — não mais como divertimento.

Em tempos em que a atuação muitas vezes se contenta com a precisão técnica ou a emoção legítima, Clóvis oferece uma terceira via: a da presença crítica, que exige do ator a consciência plena do lugar que ocupa — no palco e no mundo.

Falstaff como figura contemporânea do colapso

A grande força de Canovaccio talvez esteja no modo como opera o deslocamento histórico. Falstaff não é apresentado como relíquia. Ele é uma figura-limite, um espectro da falência política, um sintoma do tempo em que o riso já não produz desestabilização, mas anestesia.

Essa dimensão é reforçada pelas interrupções narrativas, mas sobretudo pela curadoria textual e pelo olhar do diretor. Gonzaga Pedrosa não impõe ritmo: ele escava. Cada silêncio parece cavar a memória de um país. Cada lampejo de fúria carrega séculos de farsas impunes.

    Clóvis em cena final, luz baixa
A última fala do bufão. Foto: Alexandre Diniz

Teatro como lugar de pensamento

Canovaccio não é uma peça que se consome num só gesto. Ela exige escuta prolongada, abertura ao desconforto e tempo para refletir. A dramaturgia não se organiza para emocionar, mas para tensionar. E essa escolha, que pode parecer árida a alguns, é o que faz do espetáculo uma das obras mais necessárias da cena atual.

O teatro aqui não é catarse. É crítica. É espelho. É testemunho.

Epílogo: quando o teatro exige não se calar

Num tempo em que os fantasmas do fascismo voltam a rondar, ora sorrindo, ora marchando, ora legislando, o teatro político não pode se contentar com a denúncia frágil. Ele precisa propor linguagem. Pensamento. Ato.

Canovaccio nos convoca a escutar um bufão que não quer mais entreter. Ele fala para não ser esquecido. Fala para lembrar que o poder continua operando — agora de formas mais risíveis, e por isso mais perigosas. Fala para que não fiquemos imóveis.

O espetáculo nos lembra que a arte, quando realmente inquieta, nos coloca em movimento.


Ficha Técnica

  • Dramaturgismo: Alessandro Toller
  • Pesquisa e criação: Clóvis Gonçalves
  • Direção e trilha sonora: Gonzaga Pedrosa
  • Atuação: Clóvis Gonçalves
  • Caracterização: Beto França
  • Edição de som: Rafael Thomazini
  • Espaço cênico e figurino: !mpulso
  • Iluminação: André Lemes
  • Design gráfico: Roberto Gobatto
  • Fotografia: Alexandre Diniz
  • Ano: 2025

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