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Mais um presente de Shaw para as plateias atuais – O dilema do médico

 Não sou crítico, nem tenho a pretensão de sê-lo, escrevo
resenhas de espetáculos, nunca críticas. Não escrevo para mim, escrevo para
compartilhar com amigos e uns poucos interessados nas minhas impressões sobre
um trabalho coletivo ao qual dedico a maior parte da minha vida. Posto isto,
quando expresso minha opinião sobre um espetáculo tento fazer com que ela traga
em seu bojo alguma reflexão pertinente, não cabe uma simples adjetivação. Um
espetáculo teatral não é uma bela e suculenta fruta madura tenra e doce. A
maioria de nós tem referência semelhante a respeito de frutas então a mera
nomeação de adjetivos comuns diz algo. Não é necessário refletir, os elogios
querem “vender” a fruta para que ela seja consumida. Após saciados, quando
desejamos, buscamos outra. Os espetáculos são uma expressão artística que, quando
consequente, nos levam a refletir.

No domingo, dia 22 de janeiro, no auditório do MASP assisti
a uma montagem do “Dilema do Médico” de Bernard Shaw, direção de Clara de
Carvalho, com o Círculo dos Atores e convidados. Como tratava-se de um autor
que admiro e de uma trupe valorosa não pude ir sem alguma ansiedade, não fui
como uma tabula rasa. Mesmo assim tive uma feliz surpresa. A começar pelo texto
que é 1906, imediatamente posterior a “Major Barbara” que é de 1905 (onde autor
atualiza a figura de Joana Darc para discutir a questão armamentista e a moral
burguesa), mas muito diferente, tanto na forma, como na temática. Distinta, mas
em nada inferior, em uma tragicomédia o autor discute a mercantilização dos
avanços da ciência na medicina e a arte como anteparo para suportar o
cotidiano. A montagem dá conta do desafio, a direção e os atores entendem com
clareza os desafios que o texto propõe. A maioria dos personagens são médicos,
em sua maioria preocupados com suas realizações pessoais, que vendem seus
conhecimentos como mercadorias embaladas de forma única para que assim a
raridade lhe traga lucros. Isto ocorre com duas exceções: um médico do serviço
público Dr. Blenkinsop (Luti Angeletti) que tem o seu ofício como uma atividade
de utilidade pública e com um médico um pouco mais velho, o já aposentado Sir
Patrick Cullen (Oswaldo Mendes) que analisa as situações de forma crítica, às
vezes quase fazendo as vezes de um narrador, talvez o personagem que exponha
mais claramente o ponto de vista do autor. No quadro vemos pessoas que se
apropriam dos avanços humanos na ciência como se fossem fruto de pesquisas particulares
para obtenção de lucros. O médico aposentado faz questão de ressaltar este ponto,
demonstrando mais de uma vez que toda nova descoberta médica tem seu
passado facilmente mapeado e, portanto, não era particular, mas pública. A questão
ética é explicitada, mas apresentada sem didatismos facilitadores, é
exemplificada na cena através de ações que trazem atenção sobre a questão. A
cena se passa no consultório do protagonista o Dr. Colenso Ridgeon (Sergio
Mastropasqua) que se torna “Sir” por conta de suas pesquisas sobre a cura da
Tuberculose.

Sérgio Mastropasqua (Dr. Colenso Ridgeon) e Oswaldo Mendes (Sir Patrick Cullen)
Foto de Ronaldo Gutierrez.

No próximo ato é apresentada a personagem Jennifer Dubedat (Bruna
Guerin), uma jovem e bela esposa de um artista, egressa da pequena burguesia do
interior da Inglaterra (naquele momento de virada de século e anterior a I
Grande Guerra ainda bastante próxima dos valores Vitorianos), procura Ridgeon disposta
a pagar pelos seus serviços que conheceu a partir da divulgação das suas novas
“descobertas”. O Marido, um artista chamado Louis Dudedat (Iuri Saraiva), sofre
de Tuberculose e segundo ela merece mais do que ninguém ser salvo por ser jovem
e um pintor único, um gênio. Neste momento apresenta-se um dilema moral, Ridgon só pode usar suas técnicas para salvar um paciente e fica entre
o pintor, que apesar de brilhante é um canalha aproveitador que usa de suas
habilidades para tirar proveito de todos a sua volta, e de Blenkinsop, o único médico
que se dedica a saúde pública; ambos tuberculosos, ambos condenados a morte sem
o novo tratamento. O protagonista só pode salvar um dos dois, qual teria mais
valor?


Sérgio (Dr Ridgeon), Luti (Dr Blenkinsop) e Rogério Brito (Dr Walpole)
Foto de Ronaldo Gutierrez.

Detalhe que a personagem da mulher do pintor é apresentada mais como um valor, do que como uma pessoa, ou seja, ela traz fascínio aos outros personagens pelas suas características físicas, morais (ingênua, honesta etc.) e financeiras. Uma companheira perfeita para um destes médicos que pretendem se elevar socialmente de qualquer forma. Ela traz valor em si, menos pelos seus atos, mas pelo que ela representa naquele contexto social.
Sérgio, Nábia Villela (Emmy), Luti Angelleli e Renato Caldas (Dr Ralf B. Bonington)
Foto de Ronaldo Gutierrez

Assim “privatização” das descobertas cientificas é um dos
temas da peça, outro, é o valor da arte. O artista parece ser um gênio
que cria obras primas sem grande esforço, tanto que em uma cena faz um retrato
de Sir Patrick em minutos e todos dizem que o trabalho é genial. Pelo menos
desde a Renascença a burguesia utiliza a arte como uma forma de se valorizar, a
partir de quando passaram a ter poder econômico, passaram a utilizar tanto o
conhecimento como a posse de obras artísticas (outra forma de se privatizar um
bem que naturalmente deveria ser público) como uma forma de se destacar frente
a sociedade. Não acredito que os médicos da peça tenham grande conhecimento
artística (apenas Ridgeon parece ter interesse legitimo), o pintor pouco
valoriza seu trabalho, está mais interessado em conseguir dinheiro emprestado
(que nunca será devolvido) do que em qualquer outra coisa. Assim como o
conhecimento científico é usado como mercadoria, a produção artística do pintor
também o é, Shaw mostra que a mercadoria relativiza tudo e reduz seu valor
real.

Jantar dos médicos com Jennifer (Bruna Guerin) e Dubedat (Iuri Saraiva)
Foto de Ronaldo Gutierrez

A dramaturgia apresentada por Shaw mostra um teorema
simples, uma forma muito conhecida mesmo há 117 anos, mas quando muito bem
utilizado, surte um grande efeito. Trata-se de uma peça que pela
genialidade do autor e pela temática demonstra o desejo de ser dialética. A
sobreposição das contradições das personagens leva o público a tomar suas
decisões, anos antes de Brecht e Piscator esboçarem o que seria o teatro épico.

Renato Caldas (Dr Ralf) e Oswaldo Mendes (Sir Patrick)
Foto de Ronaldo Gutierrez

Posso usar o nome carpintaria dramatúrgica para esta peça,
porque é o que o autor buscava, a partir de elementos conhecidos trazer debates
novos e consequentes. Hoje a busca por novas formas ofusca o resultado e são
mentirosas. Assim como o médico aposentado do texto nos ensina, nada é novo sob
o céu da dramaturgia, tudo é resultado de uma sucessão de ganhos diários do
trabalho de muitos. Todo trabalho artístico ou científico tem seu valor, mas o
combustível e centelha que acendeu esta nova chama veio daqueles que vieram
antes de nós. Acredito que se tivermos claro que cada trabalho é uma pequena chama
e que somente pensando em todas elas juntas é que podemos trazer luz e calor
para esta sociedade que se apresenta cada vez mais virtual e sem contato com o
real.

Bruna Guerin e Iuri Saraiva
Foto de Ronaldo Gutierrez

Falar que a direção e o elenco são excelentes, que encenação
é limpa e com um ótimo ritmo, que a cenografia é muito bem resolvida,
belíssima, seria verdade, mas ouvir isto, apesar de agradável, não é a
motivação desta equipe. Parece-me que o seu desejo é que, ao contrário dos
médicos do texto, querem trazer diversão e reflexão ao público fazendo um bem
para eles, não querendo ter retornos financeiros ou carinhos na sua vaidade,
isto é um benefício secundário, desejável talvez, mas marginal posto que não é
o que moveu o ator, nem o que move a equipe. Parabéns a todos envolvidos, a
realização deste espetáculo faz um grande bem ao teatro paulista deste século
XXI. Temos muito o que aprender.

Parabéns ao círculo de atores, aos idealizadores, aos
convidados. Projeto belíssimo, mas como tentei dizer acima, ser belo é um
acessório, trata-se de um projeto necessário! 

O DILEMA DO MÉDICO

Estreia dia 20 de janeiro de 2023 no Auditório do MASP

Endereço: Av. Paulista 1578.  

Temporada: De 20 de janeiro a 26 de março. Sextas e sábados, às 20h, e domingos, às 19h.

Ingressos: R$ 60,00 (inteira) e R$ 30,00 (Meia).

Classificação etária: 14 anos
Duração: 120 minutos

Vendas pelo Sympla.

 

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