Uncategorized

Águas que queimam na encruzilhada

 Ontem (dia 04/09) fui pela segunda vez assistir ao espetáculo “Águas que queimam na encruzilhada” do Teatro de Incêndio, direção de Marcelo Marcus Fonseca. Havia assistido a estreia, quis assistir novamente passadas algumas semanas. Resolvi chegar cedo, ao me aproximar do prédio percebi pelo movimento que estava lotado. Tenho costume de observar as diferentes plateias da cidade, fiquei feliz ao ver que em sua maioria era composta por jovens animados, nada pálidos, nada apáticos. Muito bom ver existe um púbico deste tipo para um espetáculo bastante autoral que aparentemente fala sobre as especificidades do bairro do Bixiga, traz interesse.  O espetáculo fala sobre a vida de uma população de um cortiço imaginário do Bairro do Bixiga, através deste mote vemos muito de como é a vida dos menos assistidos que vivem as margens das grandes cidades brasileiras, apesar de tratar-se de um bairro central, o Bixiga em grande parte não usufrui das benesses do novo “ciclo imobiliário”, por isto tem características semelhantes às encontradas nas periferias mais remotas.  

Trata-se de um espetáculo que dialoga fortemente com a cidade, ao pensar nesta questão me lembrei de um texto de David Mamet (teatrólogo e dramaturgo americano) que diz que o teatro da nova-iorquino tem dinheiro e influência, mas não tem mais relevância criativa, porque não dialoga com a cidade, mesmo o chamado Off Broadway é hoje apenas entretenimento para turistas, ou seja, irrelevante do ponto de vista de pesquisa teatral. Produções sintonizadas com o retorno imediato de bilheteria utilizam linguagens cênicas já testadas, de resultado certo e para serem lucrativas. Os profissionais envolvidos neste tipo de produção participam de uma atividade verdadeiramente produtiva, ligada ao retorno financeiro tanto pela bilheteria quanto pela forma de produção subsidiada, mas desligada da criação, do experimento, portanto mesmo em suas estreias estas produções estão exauridas. No caso deste trabalho do Incêndio, o grupo optou pelo caminho mais difícil, construir um espetáculo que dialogue com nossas plateias de fato, sem utilizar uma forma pronta, isto não é uma tarefa simples, prevê a construção de uma linguagem, Fonseca e sua trupe estão nesta empreitada há muitos anos de altos e baixos. As linguagens teatrais são derivadas de outras, todas em processo de mudança constante, ou seja, vivas. A chave que abria o parafuso ontem, já não abre hoje, então precisa ser mudada. Este tipo de trabalho mesmo em caso de “sucesso”, ou seja, quando consegue produzir um trabalho como “Águas…” que une o prazer estético e reflexão crítica, é considerado improdutivo se pensarmos sob o ponto de vista do capital. Sua produção é artesanal e por consequência demorada, ligada ao erro e ao experimento e, portanto, obrigatoriamente desligada do retorno de bilheteria, mas do ponto de vista de riqueza cultural da cidade é uma enorme benção, tem um valor incalculável, por isto precisa ser visto e amplamente divulgado. As grandes produções não têm espaço para flertar com o erro, é difícil inovar quando se tem pouco tempo, prazos apertados, por isto partem para formas já testadas e conhecidas.  Não existem transformações na arte cênica advindas de produções destinadas ao lucro, elas mostram formas ligadas ao passado, o que tem sentido para as plateias atuais são espetáculos feitos a partir da cidade e para ela como acontece no trabalho que é apresentado no primeiro prédio da rua 13 de Maio. 


No que tange a dramaturgia, a peça mostra que o autor soube usar a forma épica com maestria, ao pontuar dentro de sua estrutura diversas cenas dramáticas sem que aconteça uma sobrecarga de emoções, não existe a intenção de manter a emoção entre as cenas, elas se dissolvem para que com isto o público reflita e não seja levado. Isto ocorre de forma semelhante ao que Bertold Brecht (dramaturgo alemão) faz em Alma boa de Setsuan. Existe outra feliz referência, pelo menos nas minhas memorias, este espetáculo tem parentesco, mesmo que talvez seja um “primo involuntário”, com um outro encenado em 1988 no teatro de Arena, que se chamava “As Margens da Ipiranga” de Fauzi Arap diretor (diretor e dramaturgo brasileiro) onde era apresentada a vida de uma parcela da população pobre do centro no espetáculo. Outro tempero que se percebe durante o espetáculo é uma certa carnavalização que remete a obra de José Celso Martinez Corrêa. Em um dado momento pode-se se ouvir uma gravação com Geraldo filme (sambista, compositor e um dos fundadores da Vai-Vai), mas em muitos outros momentos o ouvimos de forma subliminar ao vermos as cenas baseadas cotidiano daquela população que tem como marco central uma Escola de Samba.  O texto tem tudo isto, mas não só, Marcelo Fonseca sabe unir referências sob sua batuta, ouve-se todas estas vozes, mas é um coro que da apoio a sua voz solo.  

Acabei de citar 5 homens para tentar descrever minhas impressões sobre o espetáculo, o que é um contrassenso posto que se trata de um espetáculo muito feminino. Tem como seu fio condutor central as histórias de mulheres fortes interpretadas por excelentes atrizes. A maioria das histórias são apresentadas sob a ótica feminina, com isto a principal força motriz que conduz o espetáculo, assim como ocorre na vida, é feminina, nada é imposto, tudo é exposto com delicadeza.  


Eu não gostaria de fazer nenhuma citação explícita ao trabalho de um ator ou atriz para não ser injusto, mas como a personagem “Seu Luiz” é o único que não reside no cortiço, acredito que caiba uma referência ao brilhantismo da interpretação Gabriela Morato, ela mostra uma personagem que não faz parte do que é visto pela maioria das pessoas e a Atriz expõe está “personagem invisível” com raro traquejo, a plateia vê a personagem de forma plena. Gabriela mostra mais uma vez que o “o essencial é invisível aos olhos”. 

O elenco é composto por alguns atores com bastante experiência e de outros em processo, mas existe um equilíbrio é muito bem engendrado, cada um tem o seu momento, existe um equilíbrio que deve ser ressaltado.   

Peço desculpas se fui excessivo nas citações, mas elas mostram a minha incompetência em descrever a sensibilidade e a competência do Teatro do Incêndio no desenvolvimento desse espetáculo.  

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *