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O Guarani: para além de uma rigidez histórica, a necessidade de rever e reescrever a Ópera

Por João Alves

Foi escolha certeira do Theatro Municipal de São Paulo abrir o ano de 2025 com a remontagem da ópera Il Guarary de Carlos Gomes com concepção de Ailton Krenak, direção cênica de Cibele Forjaz e direção musical de Roberto Minczuk. A montagem realiza um grande impacto com relação a ópera em nosso imaginário colonizado brasileiro ao colocar dentro da visualidade da encenação os Guaranis reais em contraponto a ideia romântica de um “herói indígena” ao gosto dos colonizadores. É bom ressaltar que isso não diminui a obra de Carlos Gomes, que era um homem de seu tempo, ou seja, do Século XIX,  envolvido pelas formas de tratamento artístico e ideológico acerca da questão indígena do seu momento histórico. Colocar novas camadas de tintas nesta história, adensadas pelas lutas e conquistas históricas dos povos indígenas, é dever e função da ópera  em nosso momento histórico, o século XXI. 

Foto: Ricardo Salvador / divulgação

Desde os primeiros momentos, os acordes clássicos de Carlos Gomes e a arquitetura da sala projetada por Ramos de Azevedo são sobrepostos pela imagética da arte de Denilson Baniwa, deixando em cores vivas a reescritura do simbólico. Somos conduzidos durante mais de duas horas pelo imaginário e estética da arte indígena de Baniwa que ganha vida e possibilidade de mobilidade apurada pelos pixels e lumens do design de vídeo de Vic Von Poser. As ilustrações são um palimpsesto indígena necessário de impressão sobre esta obra operística, gerando um show de projeção mapeada que não limita-se somente à cena, mas que explode em motivos indígenas na moldura da cena italiana, nas frisas e na cúpula do teatro. Neste ponto o design de luz de Aline Santini faz o seu papel nada fácil de revelar a cena e de não competir com as projeções, causando uma verdadeira e belíssima parceria de fótons entre as duas artes da luz. 


Os cantores líricos, que dão voz ao libreto de Antonio Scalvini e Carlo d’Ormeville, fazem com que a sonoridade clássica da ópera chegue até nós com técnica apurada e precisão. O tenor Marcello Vannucci, a soprano Maria Carla Pino Cury e o barítono David Marcondes interpretam com formosura os cantos de Peri, Ceci e Gonzales, grudando nossos ouvidos à cena em cada instante de suas aparições. A regência de Minczuk nos abraça junto com os acordes de Carlos Gomes e a cuidadosa execução da Orquestra Sinfônica Municipal. A este, já esperado encontro estético com a música, é somada a surpresa da incidência da Orquestra e Coro Guarani do Jaraguá Kyre’y Kuery que realizam um tipo de sample de fragmentos de sonoridade indígena real sobre o rebuscamento da sonoridade romântica de Carlos Gomes. 


O Coro Lírico Municipal cumpre sua participação sonora e imagética com maestria. Destacando no terceiro ato a composição  belíssima do coro com a cenografia de redes penduradas como floresta que abrem e fecham para revelar ou ocultar a cena. 


Foto: Divulgação

A presença de David Vera Popygua Ju como Peri Eté (Peri Verdadeiro), Zahy Tentehar como Onça Pajé, Araju Ara Poty como Onça Corifeia  e do Coro Guarani cria um espelho duplicado e comentador da cena. Os gregos tinham o conceito de hipóstase, substância ou existência, que servia para materializar a natureza de algo, alguém, uma entidade, ou uma ideia. Todos os deuses tinham hipóteses que acabavam sendo seus princípios ativos, ou seja, de atuação real diante dos humanos. O contraponto criado pela presença constante dos corpos e vozes indígenas na cena constroem esse contraponto ativo ao ideal romântico da história de Peri contada por essa ópera. Uma poesia natural, cotidiana, simples e sensível está ali para mostrar que existe algo para além da grandiosidade de uma história clássica enviesada pela cabeça do europeu. A hipóstase indígena em cena nesta ópera nos projeta para a realidade brasileira da presença e existência de nossos povos originários para além das distorções e apagamentos da colonização europeia.


Outra importante reescritura sobre a cena da ópera é a ação de vídeo ativismo na qual a ação indígena é documentada o tempo todo e projetada sobre a cena e arquitetura do teatro municipal. Ao ativismo audiovisual soma-se a projeção de palavras de ordem oriundas de manifestações de lutas indígenas. Realizando uma sobreposição de camadas de linguagens e textos única e necessária, com precisão e sem exageros. 


Diante disso tudo é possível compreender, mas não concordar, porque parte da crítica de ópera fez questão de atacar a montagem: ela quebra, de maneira respeitosa e com toda a elegância, as leis ditas “inexoráveis” da ópera. Sabemos que vivemos um momento de disputa cultural no campo da ideologia. De um lado, aqueles que querem que as coisas permaneçam rígidas e imutáveis, pequenas e relegadas ao campo do privilégio. De outro, aqueles que querem mudar as coisas, observar o mundo com outros olhos que não o do colonizador e transformar o privilégio de poucos em direito universal. Neste campo de disputa quero e prefiro ficar do lado da transformação, porque as coisas não “são assim”, elas “estão assim” e, portanto, são passíveis de mudança. 


A coragem de contrapor, na própria cena de O Guarani, as ideias ultrapassadas do século XIX com relação aos povos originários é uma resposta às necessidades do nosso século XXI, que precisa mostrar o indígena sem os maneirismos coloniais de outros tempos. E na própria montagem o modo e jeito de luta indígena para tal é explicitado. O colonizador não é destruído, violentado ou apagado, ele é agregado e antropofagicamente digerido e mantido como nutriente e força daquele corpo. As ideias coloniais européias estão ali e não são apagadas, elas existem, mas elas são contundentemente e verdadeiramente contrapostas como devem ser. Para além disso, a montagem ressalta a urgência e necessidade de reescrever as óperas sem apagá-las. Todas as obras artísticas são frutos de seu tempo e das ideias daquele momento, portanto é necessário construir óperas de nosso tempo, sem negar o passado e a nossa história. Todo esse ganho histórico e artístico de revisão é possível de ser visto nesta montagem histórica e necessária de O Guarani, fazendo com que a montagem ganhe espaço como marco histórico de evolução desta forma cênica nos palcos brasileiros.

Foto: Odara Audiovisual/Divulgação 



FICHA TÉCNICA

ORQUESTRA SINFÔNICA MUNICIPAL
CORO LÍRICO MUNICIPAL
ORQUESTRA E CORO GUARANI DO JARAGUÁ KYRE’Y KUERY

IL GUARANY – O GUARANI
Ópera em 4 atos de Carlos Gomes com libreto de Antonio Scalvini e Carlo D’Ormeville

Roberto Minczuk, direção musical
Ailton Krenak, concepção geral
Cibele Forjaz, direção cênica
Hernán Sánchez Arteaga, regência do Coro Lírico Municipal
Denilson Baniwa, codireção artística e cenografia
Simone Mina, codireção artística, cenografia e figurino
Aline Santini, design de luz
Vic von Poser, design de vídeo
Luaa Gabanini e Lu Favoreto, coreografias
Gabi Schembeck e Luisa Kwahary, visagismo
Ligiana Costa, dramaturgista
Ana Vanessa, assistente de direção

todas as datas
David Vera Popygua Ju, Peri Eté
Zahỳ Tentehar, Onça Pajé
Araju Ara Poty, Onça Corifeia

dias 15, 18, 21 e 25/2
Enrique Bravo, Peri
Laura Pisani, Ceci
Bongani Justice Kubheka, Gonzales

dias 16, 19 e 24/2
Marcello Vannucci, Peri
Maria Carla Pino Cury, Ceci
David Marcondes, Gonzales

Lício Bruno, Cacique / Antropólogo (dias 15, 18, 24 e 25/2)
Savio Sperandio, Cacique / Antropólogo (dias 16, 19 e 21/2)

todas as datas
Andrey Mira, Don Antonio
Guilherme Moreira, Don Alvaro
Carlos Eduardo Santos, Ruy
Orlando Marcos, Pedro
Gustavo Lassen, Alonso



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