Tybyra

Tybyra: uma tragédia indígena contra-colonial

A dramaturgia de estreia do artysta potyguara Juão Nyn, Tybyra – Uma tragédia indígena brasileira com direção de Renato Carrera, nos recorda que a tragédia colonial ainda massacra e que é necessário reagir contra ela. A peça narra a imaginação do autor de como poderia ter sido as impressões e atitudes de Tybyra acerca de sua própria vida, sexualidade, prisão, sentenciamento e execução. Tybyra configura-se  em uma ficção construída a partir do primeiro caso de LGBTfobia documentado em nosso país. Em 1614, o indígena Tupinambá, foi amarrado a boca de um canhão e executado em evento público, condenado por soldados franceses e pelo clero por praticar sodomia. A peça se resguarda ao campo da imaginação e da ficcionalização em função das poucas informações existentes sobre a personagem real, sendo a maioria dos documentos que chegaram até os nossos dias enviesadas pela visão dos colonizadores.

Foto: Matheus José Maria

No início da peça são projetados no cenário fragmentos de falas que vão de de 1549 a 2015 refletindo a ótica homofóbica, desvelando o quanto a taxação do pecado sobre os desejos dos corpos percorreu a nossa história nos últimos quinhentos anos.  De dentro de uma urna funerária marajoara renasce Tybyra, nos dias de hoje, para nos contar em língua tupy sua existência. A peça é conduzida na língua que foi retirada e muitas vezes proibida aos povos originários. A comunicação em língua portuguesa se dá no final da peça a partir do momento em que Tybyra na prisão é julgado por uma igreja que fala em latim, mas que obriga o indígena a falar em português. O discurso final de Tybyra é uma grande trovoada sobre a opressão, o anúncio de um verdadeiro dilúvio, de uma força da natureza que o colonizador nunca conseguirá controlar e impedir. A compreensão da fábula é realizada pela cuidadosa interpretação de Juão Nyn e pelo auxílio de poucas  legendas de tradução projetadas sobre o cenário, mas com o cuidado de não traduzir a peça toda, deixando com que nos levemos pela sonoridade do tupy e pelas imagens ali construídas. 

Em cena, o ator Juão Nyn, que também é compositor e cantor, brinca com a melodia do texto tanto em tupy quanto em português. Sua construção vocal é pontuada e acompanhada pela trilha original criada por Clara Potiguara que mistura sonoridades indígenas, referências eletrônicas, volgue e até música religiosa europeia quando necessário. A presença de Clara no palco o tempo todo constrói um dueto musical permanente que intensifica quando a mesma entra em cena para atuar e cantar a presença da mãe de Tybyra, no momento em que esta visita o filho na prisão. O encontro das vozes dos corpos em cena nos leva para um momento de grande sensibilidade e arrebatamento. O uso de técnico do microfone em diversos momentos para colocar um pouco ou bastante reverb na voz do ator, ajuda o público a identificar o eco de uma voz do passado, assim como o abafamento da mesma diante da opressão histórica. 

O cenário acerta na precisão da simplicidade ao transformar o vaso marajoara em casa de Tybyra e em canhão, deixando a personagem o tempo toda na mira desta arma de execução. A lona vermelha que cobre o chão e o fundo do palco funciona como tela na qual são projetados vídeos, legendas e texturas. A iluminação desenhada por Matheus Brant ajuda a projetar sobre o cenário ambientes e atmosferas, usando com muita inteligência luzes laterais e cruzamento de focos. Parte do efeito de contraluz é construído por luzes de chão rebatidas em placas de alumínio fixadas no teto causando um preenchimento suave no espaço cênico e/ou projetando a textura do alumínio na lona. O uso de diversos ângulos de projeção de luz do corpo do ator sobre o cenário, causa um efeito de animação de vídeo clipe conectando o passado com o tempo atual. A luz também serve para, de tempo em tempos, para explodir a cena ao remeter o tiro de canhão, revelando a presença do urdimento do espaço cênico. Esse tiro nos recorda a execução de Tybyra, comentário presente para não esquecermos aquilo que grita: “Tybyra foi assassinado”. 

Tybyra é uma obra indígena contra-colonial que nos tira da imagem construída pelos europeus sobre os corpos indígenas. O exercício de ficção sobre o que teria vivido, sentido e dito a personagem é verossímil e possível porque ainda hoje tantos indígenas ainda vivem, sentem e dizem o mesmo diante da opressão colonial presente no estado brasileiro. Como bem lembra Juão Nyn durante os agradecimentos do espetáculo, os povos originários através do processo de colonização foram alijados de suas terras, de sua língua, de sua cultura, do direito de festejar a sexualidade e o corpo. O teatro foi usado como primeira ferramenta de catequização e de doutrinação para adequação ao modo de vida do europeu. Usar essa mesma ferramenta para no século XXI manifestar um discurso de contraposição é fundamental e faz um pequeno acerto de contas para uma grande dívida histórica difícil de ser quitada. Juão Nyn e Clara Potiguara são processo de retomada, processo e (re)existência daquilo tudo que nos foi retirado enquanto povos originários e que precisamos pegar de volta. Que a retomada seja em festa e beleza, em ressureição e eternidade de Tybyra, para que a tragédia pare de vez e não volte a se repetir. 

Foto: Matheus José Maria

FICHA TÉCNICA

Idealização, dramaturgia e atuação: Juão Nyn
Direção: Renato Carrera
Trilha sonora original: Clara Potiguara
Direção de movimento e preparação corporal: Castilho
Assistência de direção: Jessica Marcele
Concepção de cenário: Juão Nyn e Zé Valdir Albuquerque
Confecção de cenário: Zé Valdir Albuquerque
Figurino, adereços e grafismo: Mara Carvalho
Desenho de luz: Matheus Brant
Desenho de som: Jhow Flor
Produtor musical: Nelson D
Videomaker e projeção mapeada: Flávio Alziro Msilva
Captação de vídeos: Flávio Alziro Msilva e GO Sound Productions
Consultoria de vídeo-projeção: Flávio Barollo
Comunicação Visual e Designer gráfico: Leo Akio
Visagismo: Edgard Pimenta
Assistente de Maquiagem: Júpiter
Trama Manto Tupi: use.agemó
Criação do calçado: Lucas Regal
Costureiras: Lucidalva Silva Souza e Oscarina
Contrarregragem: Zé Valdir Albuquerque
Técnica e operadora de som: Naomi Nega Preta
Assistência e Operação de luz: Juliana Jesus
Consultoria e tradução para Tupi-Potiguara: Romildo Araújo
Voz em off: Flavio Francciulli
Fotos divulgação: Matheus José Maria
Assessoria de imprensa: Canal Aberto – Márcia Marques, Daniele Valério e Flávia Fontes
Produção geral: Tati Caltabiano

SERVIÇO
Classificação: 16 anos
Duração: 70 minutos
Ingressos: R$ 50 (inteira) / R$ 25 (meia) / R$ 15 (credencial plena Sesc SP)

📅 Temporada: 9 de março a 6 de abril de 2025
🕗 Horários: Sexta a sábado, às 20h; domingo, às 18h
📍 Local: SESC Avenida Paulista – Av. Paulista, 119 – Bela Vista – São Paulo – SP

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