
A Memória na Areia: Para Mariela e a Construção do Pertencimento
No coração de uma arena retangular, cercado pelo público de todos os lados, um grande quadrado de areia domina o espaço. Esse elemento cenográfico, ao mesmo tempo lúdico e simbólico, se torna palco de memórias, transforma-se em cidade, em infância e, por fim, em identidade. Assim começa Para Mariela, novo espetáculo do Grupo Sobrevento, em cartaz no Teatro Sobrevento até 30 de março, com entrada gratuita.

Inspirado na cultura boliviana e nos relatos das crianças imigrantes da região do Brás e Belenzinho, o Sobrevento construiu o espetáculo a partir do Teatro de Objetos documental, resultado de 18 meses de escuta ativa em escolas, ONGs e centros de imigrantes. A pesquisa revela uma preocupação essencial: criar um espaço de pertencer, onde essas crianças e suas famílias possam se ver representadas e, ao mesmo tempo, conectadas ao novo território que habitam.
O espetáculo se estrutura em três partes. Na primeira, vemos a cidade nascer na areia, moldada pelas mãos dos atores, que evocam memórias de infância e geografia afetiva. Não importa se essa cidade está na Bolívia, no Brasil ou em qualquer outro país sul-americano. O que importa é o reconhecimento que ela desperta em quem assiste. Para aqueles que cresceram em cidades pequenas (ou cujos pais vieram delas), essa parte do espetáculo toca profundamente. O controle narrativo se alterna entre os atores, criando um jogo complementar, sem linearidade fixa, mas com grande precisão.

A comparação com Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, faz sentido na maneira como a obra parece construir uma memória coletiva que transcende o tempo linear. Mesmo sem recorrer ao realismo mágico, a atmosfera criada no palco sugere uma experiência de pertencimento e evocação, onde o passado e o presente dialogam de maneira fluida.
A transição para a segunda parte acontece quando a areia é alisada. O rodo que apaga as marcas do passado dá lugar a um novo tempo: o das crianças na cidade grande. Agora, as referências são urbanas, diferentes das da cidade pequena, mas carregadas de igual lirismo. É o olhar infantil que transforma becos e ruas em territórios de sonho, mesmo em um contexto social de vulnerabilidade.

Na terceira parte, a cena se enche de música e símbolos da cultura andina, levando o público ao reconhecimento de sua própria história. O espetáculo se torna uma celebração da identidade imigrante e da integração cultural, algo que não é apenas representado, mas vivido na prática pelas crianças e famílias que frequentam o Teatro Sobrevento. A escolha do nome Para Mariela não é apenas uma referência abstrata, mas uma homenagem direta a Mariela, costureira boliviana da região, que representa tantas histórias de trabalho, luta e esperança.
Em termos de linguagem, o Sobrevento aposta na simplicidade e no poder evocativo dos objetos cotidianos, como mochilas, bichinhos de pelúcia e garrafas d’água. Pequenos elementos que guardam afetos e, por isso, se tornam carregados de significado. A influência da pesquisa do grupo em Teatro para Bebês e Teatro de Bonecos se reflete na capacidade de criar poesia a partir do essencial.

O pensamento de Antônio Cândido, em O Direito à Literatura, ressoa fortemente neste espetáculo. A arte é um direito fundamental porque permite que os indivíduos compreendam seu lugar no mundo. Ao oferecer um teatro que fala diretamente com sua comunidade, o Sobrevento cumpre esse papel de forma contundente. Para Mariela é mais do que uma peça; é um convite para o reconhecimento, para a valorização da identidade e para a construção de um espaço comum.
A força desse espetáculo está em como ele transforma a escuta em criação, fazendo com que um processo de investigação sobre a realidade do entorno se torne arte pulsante e necessária. O teatro aqui não é um espelho do real, mas uma reconstrução simbólica, uma maneira de devolver às pessoas aquilo que já lhes pertence: suas histórias, seus sonhos e sua cultura. Esse processo de escuta e diálogo com a comunidade faz do espetáculo uma experiência de conexão social, que não apenas representa os imigrantes, mas os coloca como agentes ativos de sua própria narrativa.

Ao final, Para Mariela é um lembrete poderoso da necessidade de um teatro que não apenas fale sobre as pessoas, mas que lhes dê voz, um teatro que construa pontes entre a memória e o presente, entre o indivíduo e a coletividade. Esse é o teatro essencial, que reafirma sua função política e poética no mundo.

Ficha Técnica
Criação: Grupo Sobrevento
Direção: Luiz André Cherubini e Sandra Vargas
Dramaturgia: Sandra Vargas
Elenco: Sandra Vargas, Luiz André Cherubini, Maurício Santana, Agnaldo Souza, Liana Yuri e Daniel Viana Músicos: Goyo (charango) e Lolo (violão e flautas)
Iluminação: Renato Machado
Figurino: João Pimenta
Assistente de Figurinos: Jaqueline Lima e Sofia Duarte

